sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Nicolau Maquiavel: anjo ou demônio?

Depois de Dante, Boccaccio e Petrarca (embora este haja nascido fora da cidade), Florença viu crescer um dos grandes pensadores e literatos do mundo ocidental: Niccolò Machiavelli, que ao lado de Ludovico Ariosto e Tasso, representa o grande nome do século XVI na Itália. Injustiçado, mal lido e muito mal traduzido e interpretado, o termo maquiavélico incorporou as piores qualidades que um ser humano poderia vir a ter. Há alguns anos, na TV Cultura, um filósofo falando sobre Maquiavel, traduziu a passagem "più conveniente andare dietro alla verità efetualle delle cose", presente em "O Príncipe" como "mais conveniente conformar-me com a verdade efetiva das coisas", quando o contexto exigia "mais conveniente buscar a verdade efetiva das coisas". Maquiavel falava, neste momento, da dinamicidade dos fatos, como se pode ver, a tradução acabou com o pensamento do escritor italiano. Imputaram a Maquival a frase "Os fins justificam os meios", e como me dói na alma (e nos ouvidos), quando alguém faz essa citação, inventada por traduções mal realizadas e interpretações, como disse, descontextualizadas, já que não há essa passagem em nenhuma obra de Maquiavel, nem escrita, nem expressa como pensamento. Há poucos dias, na TV Aberta, um tal de Dr. Norberto Keppe, brasileiro, estudioso da psicosociopatologia, que diz conhecer marcas da sanidade e insanidade no indivíduo e o resultado disso no corpo social, por meio da psicanálise, metafísica e filosofia, disse que Maquiavel era egoísta, só pensava em si mesmo; tratava-se de uma psicopatia, e que acabou ficando louco. Quanta bobagem. Até pensei que nos próximos programas poderia se dizer que Nietzche foi a origem do nazismo, que Dostoiévski tinha epilepsia porque se julgava responsável pela morte do pai, que Bakhtin ouvia vozes, daí seus pensamentos sobre Dialogismo e Polifonia, que Graciliano Ramos odiava os homens, e tudo isso explicaria o que escreveram, quando a crítica literária, há muito, já discerniu autor, narrador e personagens (em todas suas singularidades e multiplicidades). Não se pode fazer uma leitura de Maquiavel tão simplista, recheada pelo senso comum, sem considerar, no mínimo, a História, a Filosofia, a Política e, acima de tudo, a Literatura, porque Maquiavel utilizava recursos estilísticos fecundos em suas escritas. É no conjunto, se possível, com a leitura em italiano, que se pode aproximar do que representou Maquiavel para seu tempo e para o mundo. Há muitos argumentos para se questionar o que foi dito a respeito de Maquiavel, contudo, basta dizer que ele foi o primeiro a pensar o conceito de Estado como conhecemos hoje e a dizer "os italianos", já que pensava na nação, e não em Florença, três séculos antes da unificação do país, embora fosse a Itália uma colcha de retalhos servindo a interesses externos. Para Maquiavel, os fins poderiam produzir os meios, jamais justificá-los. A grande confusão que se faz ainda quando se pretende interpreta-lo é julgar que ele tenha feito tratado de moral, não o fez: falava de fatos. Foi grande na prosa e no teatro. Maquiavel sofreu pelas mãos da tirania, da ânsia pelo poder, assim como Dante Alighieri, o maior poeta italiano, sofreu por questões políticas, sendo exilado perpetuamente da cidade em que nasceu e que amava. Diferente de outros de sua época, Maquiavel não teve direito a um epitáfio, sendo a injustiça corrigida somente no século XVIII, por um inglês, passando a constar em seu túmulo: Tanto nomini, nullum par elogium (Para tão grande nome, nenhum elogio é suficiente).

terça-feira, 10 de novembro de 2009

As ciências humanas...

Com as novas tecnologias, cada vez mais as pessoas se afastam do contato com o outro e o mundo vai ganhando novas formas de convívio. Nesse aspecto, as ciências humanas foram perdendo o lugar que deveriam ocupar, não somente nas áreas de conhecimento, mas também na vida cotidiana. É claro que quando se luta pela sobrevivência, nossa satisfação passa a ser somente imediata, perdemos a capacidade (e o interesse) da contemplação. É o próprio Todorov que nos alerta para essas transformações, já que até mesmo na França, país que depois da formação dos Estados nacionais tornou-se o centro cultural do planeta, os cursos de humanas vão perdendo cada vez mais espaço para outras áreas, afetas a essa "modernização". Pouco se fala, se diz, se reflete sobre Filosofia, Literatura, Sociologia, Antropologia, História... Cada vez mais esses grupos se restringem, a meu ver, grande contradição com o que se pode obter dessas ciências. Mas o resultado disso tudo está marcado em nosso dia-a-dia. Não há tempo para ler, para falar, para estar com as pessoas. Vivemos numa corrida frenética para se chegar a lugar algum. E se não estivermos atentos a isso, acabamos caindo na inevitabilidade das consequências. Agregar valores, conhecer e somar culturas, interagir, ensinar e aprender... o que somos se não seres em constante evolução? A maior conquista é estar sempre descobrindo que muito pouco se sabe sobre aquilo que achávamos muito saber, aí estaremos sempre receptivos a novos conhecimentos. E essa é a maior resposta que as ciências humanas podem nos oferecer. Aliás, fiquei extremamente contente em saber que a Unicamp tem um curso pioneiro de Estudos Literários, em quatro anos integrais, em que o aluno, ao concluí-lo, está apto a exercer a docência universitária e a crítica literária, além de trabalhos na área cultural. Esse curso demonstra que ainda há instituições no país comprometidas com o que há de melhor em formação humana e acadêmica no mundo, assim como seus alunos, e não apenas instituições preocupadas com arrecadações exorbitantes, com as roupas que seus discentes estão vestindo, e estudantes que perdem tempo precioso com futilidades, dentro do próprio ambiente universitário, contaminados por visões preconceituosas e um despreparo intelectual motivado pela inconsciência do que fazem e querem em se tratando de suas formações.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Marcas na parede...

Dia 21 de novembro será lançada a antologia de contos de suspense e de terror Marcas na Parede, em que, juntamente com outros autores, roteiristas, jornalistas, publicitários, professores, profissionais de artes e músicos, participo do projeto com o conto "A Dança da Vespa", que se inicia com a seguinte epígrafe, pertencente ao escritor alemão Goethe:
O verdadeiro tema, o único e o mais profundo de todos da história do mundo e dos homens, ao qual todos os outros estão subordinados, continua sendo o conflito entre a crença e a descrença.
No total, são 47 contos tematizados pelas mais diversas possibilidades do gênero, com toda a riqueza de personagens que habitam o nosso imaginário real e que, ainda hoje, transgridem a lógica da divisão entre corpo e espírito, parecendo, essas almas errantes, estarem perdidas em nosso mundo físico. A obra será distribuída na Livraria Cultura.
Do gênero, Edgar Alan Poe foi um dos grandes mestres, além de grande crítico literário e teórico do conto. Suas histórias são ambientadas entre a lucidez e a loucura, por isso, sua grande característica foi explorar o terror psicológico. Quem não se recorda de "O gato preto" e "A queda da casa de Usher"? Stephen King, também norteamericano, publicou uma grande quantidade de livros, muitos deles, adaptados para o cinema, sendo traduzidos em diversos idiomas. Tzvetan Todorov, em sua obra Introdução à Literatura Fantástica, define o fantástico pela incerteza, a explicação hesitante entre o real e o irreal. E, segundo Todorov, se “as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a obra se liga a um outro gênero: o estranho. Se, ao contrário, decide que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno pode ser explicado, entramos no gênero maravilhoso”. Para Italo Calvino, "o conto fantástico revela traços da sociedade em que se insere (...) o fato extraordinário que o conto narra deve sempre deixar uma possibilidade de explicação racional".

Vitamina de pensamentos vividos em um mês...

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Música italiana


Esse site é incrível, mais de 1000 músicas italianas, compostas até 1976, listadas por ordem alfabética de intérpretes. São músicas mais antigas, mas para o amante da cultura italiana, vale a pena conferir, por exemplo, "Noi due per sempre", de Doris Ghezzi e Wess, "Roberta", de Pepino di Capri, Il mio amore per te, de Roberto Carlos, ou Io che amo solo te, de Sergio Endrigo!!!

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Mariana Alcoforado, a freira de Beja

As Cartas Portuguesas, cuja primeira edição reporta a 1666, foram atribuídas a Mariana Alcoforado, nascida em 1640. Aos onze anos ela já havia entrado para o Convento de Beja, em Portugal, e teria apaixonado-se perdidamente por um Capitão francês, que auxiliou o país durante os anos de Restauração. Em 1669 surge na França Lettres Portugaises, traduzidas pelos séculos para todos os idiomas, além de servir como tema de peças, óperas, pinturas, outros livros. Em uma dessas obras, Mariana é descrita como "uma magra freira que o pecado devora". Que uma paixão violenta e um amor intenso podem ter arrebatado a religiosa, disso não há a menor dúvida, muito embora várias tentativas conservadoras buscaram sufocar a estória de Mariana. Basta pensarmos que em pleno século XX vários protestos se acenderam com a homenagem feita à Florbela Espanca na cidade de Évora, quando uma estátua sua foi colocada na praça da cidade. Na década de 70, três escritoras portuguesas publicam anonimamente uma reedição das Novas Cartas Portuguesas.
Com qualidade de estilo literário e carregadas de sentimento, as Cartas tiveram pouca importância para o Oficial francês, que até mesmo constituiu família em seu país. Quantos encontros foram necessários para que se erguesse tamanho sentimento, não se sabe, mas não foram poucas as vezes em que ele esteve nos quartos de Mariana, como é descrito nas suas próprias Cartas. Enfim, "se foi Flaubert que disse que o coração é riqueza que não se vende e não se compra, mas apenas se dá, quem ousa contrariá-lo? (Santos Costa)"

Carta 1: Tão deslumbrada fiquei com os teus carinhos que seria bem ingrata se não te amasse com o mesmo desvario a que me levava a paixão quando me davas provas da tua. Como é possível que a lembrança de momentos tão belos se tenham tornados tão cruel? E como podem agora contra a sua natureza, servir para me torturar o coração? (...) É esta a recompensa que me dás por te ter amado com tanta ternura? Mas não importa, estou decidida a adorar-te toda a vida e a não ver seja quem for.

Carta 2: Quero que toda a gente saiba, já não faço disso um segredo e estou encantada por ter feito tudo o que fiz por ti, contra toda espécie de conveniências. E já que comecei, a minha honra e a minha religião hão-se consistir unicamente em amar-te perdidamente toda a vida. (...) Saio o menos possível do meu quarto, onde vieste tanta vez, e passo o tempo a olhar o teu retrato, que amo mil vezes mais que à minha própria vida.

Carta 3: Trata-me com dureza. Que não te baste a violência dos meus sentimentos! Sê mais exigente! Ordena-me que morra por ti! Suplico-te que ajudes a vencer a fraqueza própria de uma mulher, e que toda a minha indecisão acabe em verdadeiro desespero.
Carta 4: Bem sei que te amo perdidamente; no entanto, não lamento a violência dos impulsos do meu coração; habituei-me à sua tirania, e já não poderia viver sem este prazer que vou descobrindo: amar-te entre tanta mágoa. O que me atormenta é a raiva e a aversão que ganhei de tudo. A família, os amigos e este convento são-me insuportáveis. Tudo o que seja obrigada a ver, tudo o que tenha de fazer inadiavelmente, me é odioso.

Carta 5: O orgulho, tão próprio das mulheres, não me ajudou a tomar qualquer decisão contra si. Ah, suportei o seu desprezo, e teria suportado o ódio e o ciúme que me provocaria a sua afeição por outra! Pelo menos teria uma paixão para combater. Mas a sua indiferença é intolerável. (...) Vivi muito tempo num abandono e numa idolatria que me horrorizam, e os remorsos me perseguem com uma crueldade insuportável. Sinto uma enorme vergonha dos crimes que me levou a cometer; já não tenho, pobre de mim, a paixão que me impedia de lhes conhecer a enormidade. (...) De si nada mais quero. Sou uma louca por passar o tempo a repetir a mesma coisa.

Estive na cidade de Beja e pude visitar o Museu Rainha D. Leonor, o antigo convento em que viveu Mariana Alcoforado. Ali se pode sentir, com toda a força, a história que se insere nas Cartas Portuguesas. Estar de frente à janela no interior do mosteiro nos faz recriar a imagem de Mariana sonhando sua liberdade e sua paixão, janela por onde seus pensamentos puderam chegar até nós. O estilo epistolar de Mariana inspirou diversos outros escritores, como Chordelos de Laclos, em suas Relações Perigosas. Também constitui tema importante em O Primo Basílio, de Eça de Queirós, entre tantas outras referências ao longo dos tempos. Bakthin diz que o texto sempre faz referência a outros textos passados e sempre fará a outros futuros. Nesse sentido, a freira de Beja deixou marcada suas impressões de vida na literatura universal. Mariana faleceu em 1723, seu amado, em 1715.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Amar, verbo intransitivo.

Quem ama ama alguém... quem nunca aprendeu o que é um verbo transitivo dessa forma? Por essência, o verbo amar é transitivo direto. Mas sabemos que a língua carrega inúmeras possibilidades. Mário de Andrade, em seu livro, o nomeou como intransitivo. Por que? Por que basta amar, nada mais é necessário, ou será que o amor não se complementa, realiza? Uma coisa é certa, quem define, não ama. Amor é calmaria, amor é uma criança, amor é uma dor, amor é felicidade, amor é sofrimento, amor é crescimento, amor é... amor é tudo isso e muito mais, basta ser completo. E só o sabe, quem amou, quem sentiu morar no peito esse nobre sentimento, que o modifica, e que modifica também a outra pessoa, mesmo só aos olhos de quem ama. Quantos desejos invadem a alma de quem ama, quantos sonhos se constróem, quantas madrugadas os pensamentos são povoados por aquele a quem se ama. Quem ama não evita sofrer, quem ama não se envergonha de chorar, quem ama muda seus próprios paradigmas. Tudo é possível para o amor, desde que ele se realize, porque até mesmo o amor se acaba. O amor e o tempo não são inimigos, mas travam uma luta em silêncio. O amor sabe que quando querem esquecê-lo, o tempo é o maior aliado, daí uma certa repulsa ao Deus Cronos. É claro que esse mesmo tempo o ajuda a crescer, a solidificar-se, a torná-lo eterno, mas poucos amores se aliam a ele, a maior parte, entram em conflito, mas aí, não é culpa do Deus do tempo, é culpa do próprio ser humano em sua capacidade de amar. E o amor se renova, hein... mas aí é preciso de muita vontade, de muita força, de muita sinceridade. Disse que o amor é dor, mas quando é só dor, virou doença, e a hora, embora não desejamos, é a de curar-se. Nesse mundo de máquinas, ainda não aprendemos a sê-la, pois ainda há o amor, com todas suas (im)possibilidades, (in)certezas e (in)definições. Aliás, o amor só pode ser definido no dicionário. Podemos até aprender a amar, com muita boa vontade e uma grande dose de admiração, carinho e respeito.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Raul Santos Seixas

Falar do Raul (Seixas é perder a intimidade) é ao mesmo tempo fácil, ao mesmo tempo difícil, fica aquela impressão de que nunca teria falado o suficiente. É a minha referência máxima. Gosto do Chico Buarque, da maioria da MPB, do rock nacional, sertanejos antigos, mas Raul... para mim é o cantor, o ator, o compositor... o escritor que talvez tenha me motivado a estar no nono ano de Letras para, com alguma pretensão, entendê-lo. E sei que tudo que eu escrever será pouco científico, "Coisas do coração". Adoro o Raul, não o Raul do "toca Raul", não o Maluco Beleza, o Ouro de Tolo, mas também, e não aquele que nasceu há dez mil anos atrás. Amo aquele que nasceu comigo, no disco Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!, décimo segundo solo, que insisti a minha mãe para comprar no Paes Mendonça. O Raul adorado pela minha prima Selma, pelo motorista Zé, aquele Raul meio rock, meio sertão. O Raul que usou a Globo, e não que a Globo usou, no melhor estilo de Arnaldo Jabor. Não o Raul que muitos adoram, fumando maconha e jogando ambas as mãos para a direita e esquerda e o tornam ridículo e odiável, como tantos fãs da USP de Chico Buarque e Che Guevara. Amo o Raul que poucos conhecem. O Raul de Baby, de Quando você crescer, de Paranóia II, das Minas do Rei Salomão, de Brincadeira, do Cachorro Urubu, de Novo Aeon, de Por quem os sinos dobram, de Planos de Papel, o Raul que gritou EU SOU EGOÍSTA!, que gritou QUANDO ACABAR O MALUCO SOU EU!, de Quero mais, Só pra variar, Nuit, o grande Carpinteiro do Universo. Se dessas dezesseis músicas você conhecer doze, você, mesmo sem querer, também ama o Raul: o compositor de 99, 39% das músicas que cantou, porque cantava o que acreditava.
Raul Santos Seixas era uma enciclopédia do Rock'n Roll, do melhor Rock'n Roll, Chuck Berry, Little Richard, Bill Halley, Jerry Lee Lewis... , Elvis Presley. Raul, como haverá um outro igual sem ser imitação de Raul? Impossível! Raul personagem de si mesmo, que nunca foi personagem, nunca foi mascarado, e como foi difícil ser Raul, com cavanhaque, óculos escuros, jaqueta de couro: "bota o seu blusão de couro, agora é que eu quero ver..." Sua espada, Raul, foi a guitarra na mão... e você foi o maior dos Samurais, cantando Loteria da Babilônia, Teddy boy, rock e brilhantina, Caroço de Manga. Você beirou a ser um ídolo, e só não foi porque essa palavra é apenas produto de uma intensa cegueira, mas quem te conhece, usa óculos escuros... Aos que te ignoram por uma voz pouco afinada ou te relegam ao álcool e às drogas, lembre-se que esses mesmos julgaram Dostoiévski por uma linguagem mal cuidada e por um nacionalismo exacerbado. Para mim, com a liberdade de ser fã, duas grandes mentes do mundo ocidental, não há uma frase que não me lembre Dostoiévski, não há uma canção de Raul que não me remeta a um segundo de minha vida.
Pensei quais seriam as cinco músicas de Raul de que mais gosto... seria mais fácil dizer a que mais odeio: Eu sou eu nicuri é o diabo, pois são poucas. Fazendo esse exercício, selecionei Eu sou egoísta, com uma belíssima interpretação da Pitty, que para ser perfeita só poderia ter esquecido o famigerado "Toca Raul", As minas do rei Salomão, Baby, Meu amigo Pedro e Loteria de Babilônia. Um bônus: Coisas do coração...

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Primeiros encontros com Teolinda Gersão

Teolinda Gersão estudou em Portugal e na Alemanha, exercendo a atividade docente nos dois países, posteriormente, ensinando Literatura Alemã na Universidade de Lisboa, até 1995, passando a partir de então a se dedicar exclusivamente à literatura. Logo no seu primeiro livro, O Silêncio (1981), a escritora já foi premiada. Suas obras tratam sobre a dificuldade de comunicação, a repressão, a violência às liberdades, opressões impostas por um Sistema às classes mais frágeis, o posicionamento do ser humano frente ao mundo. Apesar da protagonização de personagens femininos, Teolinda não é feminista, pois admitir esse posicionamento seria pouco abrangente para o entendimento literário, filosófico e social da escritora. Teolinda tem uma marcante preocupação social, o que faz da literatura uma atividade prática, no sentido de representar questões diretamente afetas a um dado período histórico, para caracterizá-lo no indivíduo e ultrapassá-lo no tempo. Quando comparada à Clarice Lispector, em relação à inquietude da busca pela plenitude da vida, respondeu "há nela toda uma vertente metafísica que a mim não me seduz nem me interessa. Quanto mais vou avançado na vida, mais sinto isso. Apesar de toda admiração e ternura que tenho por Clarice, aquele lado ascético, o lado que diz "não" à vida comum e passa de certo modo ao lado do cotidiano e da vida banal e real dos outros, a troco de uma qualquer revelação transcendente, que no fundo é uma miragem, esse lado, para dizer a verdade, enerva-me..." (GOMES, p. 165)
Conheci a escritora Teolinda Gersão nas aulas de Literatura Portuguesa, na USP, ainda na graduação, ministradas pela professora Lilian Jacoto. Na oportunidade, estudávamos os escritores contemporâneos e a obra em que nos centrávamos eram Os Teclados. Terminada a faculdade, em um curso de extensão sobre o conto português no século XX, voltei a entrar em contato com Teolinda, agora por intermédio do excelente texto "Um casaco de raposa vermelha". Este conto tematiza dois aspectos importantes da literatura do século XX; o desejo (desorganização do destino), segundo Foucault, o indivíduo que deseja se revela contra a ordem das coisas; e a escrita do corpo (republicação das Cartas Portuguesas por três escritoras na década de 70).
Uma pequena empregada bancária vê numa loja um casaco de raposa vermelha e passa a desejá-lo. Durante três meses (tempo necessário para juntar o dinheiro e liquidar o valor do casaco) sofre uma tranformação que a faz vestir essa nova pele, o foco é deslocado do objeto para o sujeito, como consequência, há uma mudança de conduta, uma transformação desse sujeito. Durante esse processo, o casaco desperta na mulher um desejo primitivo, inclusive de essência animal, fazendo-a despir da figura de bancária para tornar-se mulher e, finalmente, uma raposa. Há, ao final, um disfarce da barbárie e a incorporação do ônus e a volúpia da fantasia.

- Então bom-dia e obrigada, disse saindo à pressa, receando que o tempo que lhe restava se esgotasse e as pessoas parassem alarmadas a olhá-la, porque de repente era demasiado forte o impulso de pôr as mãos no chão e correr à desfilada, reencarnando o seu corpo, reencontrando o seu corpo animal e fugindo, deixando a cidade para trás e fugindo - e assim foi com esforço quase sobre-humano que conseguiu entrar no carro e rodar até a orla da floresta, segurando o seu corpo, segurando ainda um minuto mais seu corpo trémulo - antes do bater da porta e do verdadeiro salto sobre as patas livres, sacudindo o dorso e a cauda, farejando o ar, o chão, o vento, uivando de prazer e de alegria e desaparecendo, embrenhando-se rapidamente na profundidade da floresta (A mulher que prendeu a chuva e outras estórias, 2007).

No momento, o livro que tenho como corpus de análise é Paisagem com mulher e mar ao fundo, ambientado durante o período da ditadura de Salazar, em Portugal. A riqueza das imagens, a forma particular de construção do texto, a linguagem e os diálogos que se estabelecem, a força simbólica, sobretudo, a multiplicidade de elementos que precisam ser associados para aprofundar-se no texto de Teolinda Gersão é que me motivou a buscar várias fontes de estudo e vários estudiosos, entre a linguística, a crítica literária, a filosofia e a história, como Bakhtin, Todorov, Antonino Pagliaro, Eni Orlandi, Fiorin, Diana Luz, Bauman, Adorno, Umberto Eco, além de livros de História, a fim de que se possam encontrar os aspectos dialógicos (múltiplas vozes) que surgem no livro, como elas se impõem ou se calam, para quem falam, como articulam os aspectos poéticos, e buscar uma unidade para tantos símbolos que enriquecem a significação da narrativa. É uma atividade complexa, porém, que me enriquece a cada nova leitura, ensinamentos que somente são permitidos por uma obra de tanta qualidade, com tantos recursos literários, e que estabelece um contato íntimo com várias outras disciplinas. Pretendo, ao longo desse estudo, postar textos baseado nas impressões sobre os resultados dessa análise.

Pela primeira vez na sua vida andava num lugar e não contra um lugar, reparou, e não havia nenhuma força gasta em vão. Apenas o prazer secreto de existir, de existir sem pressa, vagueando, domesticando as coisas com o olhar, deixando-se domesticar pelas coisas, sentindo na casa vazia a presença dele, uma presença sem defesa, abandonada, como se o olhasse enquanto dormia.
(...) Uma etapa da sua vida terminara e uma outra se abria, uma verdade descoberta com o corpo, à medida de seu corpo despido de mitos, cumprido, experimentado, só de experiências e de verdade feito - a força que havia no amor, numa relação de solidariedade e não de supremacia nem domínio, as pessoas reciprocamente apoiando-se, trabalhando juntas para um mesmo fim (Paisagem com mulher e mar ao fundo).

- GOMES, Alvaro Cardoso. A Voz Itinerante. São Paulo: EDUSP, s/d.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Valery disse que a prosa é a marcha e a poesia é a dança...

Gosto muito das músicas do Barão Vermelho, sobretudo, interpretadas pelo Frejat, para mim, hoje o melhor representante do Rock Nacional, dos grupos que foram surgindo a partir da década de 80. O novo mercado musical "obrigou" muitos artistas a se adaptarem para que pudessem sobreviver nesses novos tempos. Na minha opinião, alguns foram longe demais, como os Titãs e o Paulo Ricardo, mas isso é uma outra estória... Rock nacional começou lá atrás, em 1968, com uma banda chamada Raulzito e seus Panteras, de onde emergiu o grande roqueiro nacional, Raul Seixas (de quem farei um comentário especial, mas falar de Raul e não cair na mesmice precisa de muita concentração), cantor, campositor, artista.
Gosto dessa música pela forma como a voz chama a todos para ver a poesia, pelos significados que estabelece, sobretudo porque mostra como a literatura está presente em nossos dias, mesmo que não percebamos de uma forma direta, e é sobre isso que também fala a música. Quem, mesmo sem estudá-los, nunca ouviu falar de Dante Alighieri ou Miguel de Cervantes e seu Dom Quixote? Quem nunca ouviu os termos dantesco (fazendo referência à grandiosidade da Divina Comédia) e quixotesco? O poeta é aquele que enxerga as mesmas coisas que nós, mas as traduz e exprime de uma forma diferente, que toca a nossa sensibilidade. E por mais que temos a sensação de que o mundo caminha para a degradação, que as coisas antigamente eram melhores, que as pessoas estão cada vez mais individualistas, a vida nos presenteia com momentos que nos demonstram que o poeta ainda está vivo. Vamos continuar lendo os jornais, pois é inútil ignorar o cotidiano e suas obrigações, mas de vez em quando, sempre que possível, ver o sol e escutar o galo cantar... e ainda me lembro quando o galinho cantava todas as noites.

O Poeta está vivo (link com o vídeo)
Composição: Roberto Frejat e Dulce Quental

Baby, compra o jornal, e vem ver o sol.
Ele continua a brilhar, apesar de tanta barbaridade...
Baby escuta o galo cantar, a aurora dos nossos tempos.
Não é hora de chorar, amanheceu o pensamento...
O poeta está vivo, com seus moinhos de vento,
a impulsionar a grande roda da história...
Mas quem tem coragem de ouvir, amanheceu o pensamento,
que vai mudar o mundo, com seus moinhos de vento...
Se você não pode ser forte, seja pelo menos humana,
quando o Papa e seu rebanho chegar, não tenha pena...
Todo mundo é parecido, quando sente dor,
mas nu e só ao meio dia, só quem está pronto pro amor...
O poeta não morreu, foi ao inferno e voltou,
conheceu os jardins do Éden e nos contou...
Mas quem tem coragem de ouvir, amanheceu o pensamento,
que vai mudar o mundo, com seus moinhos de vento.

a. O poeta está vivo com seus moinhos de vento

- A aventura vai encaminhando os nossos negócios melhor do que soubemos desejar, porque, vês ali, amigo Sancho Pança, onde se descobrem trinta ou mais desaforados gigantes, com quem penso fazer batalha, e tirar-lhes a todos as vidas, e com cujos despojos começaremos a enriquecer; que esta é uma boa guerra e bom serviço faz a Deus quem tira tão má raça da face da terra.
- Quais gigantes? – disse Sancho Pança.
- Aqueles que ali vês – respondeu o amo -, de braços tão compridos, que alguns os têm de quase duas léguas.
- Olha bem Vossa Mercê – disse o escudeiro – que aquilo não são gigantes, são moihos de vento, e o que parecem braços, não são senão as velas, que tocadas do vento fazem trabalhar as mãos.
- Bem se vê – respondeu Dom Quixote – que não andas corrente nisso das aventuras; são gigantes, são; e, se tens medo, tira-te daí, e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha (CERVANTES, 2002:59)

Depois de atuar por anos como soldado, Miguel de Cervantes estreia como escritor em 1585. Não foi um grande dramaturgo, tendo, contudo, imortalizado sua existência com a obra Dom Quixote, publicada em 1604. Um grande tema do livro passa pela questão da loucura, a condição de se viver em ilusão, uma vida em que a realidade não pode encontrar um lugar. Segundo o crítico Harold Bloom, Cervantes foi o maior escritor em língua espanhola, “eminência para todo o sempre, comparável a Dante, Shakespeare, Montaigne, Goethe e Tolstoi, que escrevem nos demais grandes idiomas vernáculos ocidentais”.

b. O poeta não morreu, foi ao inferno e voltou
Conheceu os jardins do Éden e nos contou


Por mim se vai das dores à morada,
Por mim se vai ao padecer eterno,
Por mim se vai à gente condenada.

Moveu justiça o autor meu sempiterno
Formado fui por divinal passança
Sabedoria suma e amor superno

No existir, ser nenhum a mim se avança
Não sendo eterno, e eu eternal perduro
Deixai, a vós, que entrais, toda a esperança!

A vida de Dante Alighieri assemelha-se a um poema atribulado, mais próximo do Inferno do que ao Purgatório criados pelo poeta, bem distinto do Paraíso. Quanto à musa, Guido Cavalcanti, também poeta, revela que “Beatriz é toda felicidade que ele teve na vida e, sem ela, não teria encontrado o caminho da salvação”. (BLOOM, 2003:122)
Dentre todos os relatos bíblicos, pode-se dizer que o mais mítico é aquele do drama do Éden, contido nos capítulos II (versículos 7-25) e III do Gênesis. O trajeto de Dante se inicia pelo Inferno, que corresponde à primeira parte da Divina Comédia. Cada círculo do Inferno correponde a um tipo de pecado, do Limbo à cidade de gelo, onde se encontra Lúcifer. As outras duas partes desenvolvem-se no Purgatório e no Paraíso, onde finalmente Dante encontra sua musa Beatriz.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Para viver um grande amor...

Carinho, respeito, confiança: depois que dois olhares se cruzam e acontece a mágica de despertar o amor esses três elementos, estando presentes, poderão construir um amor eterno, mesmo nos dias de hoje, onde outras pessoas só entrarão para acrescentar, e não para quebrar essa mágica. Hoje já não posso mais acreditar que o amor seja apenas uma criação da sociedade burguesa, do período romântico: afirmo isso com propriedade. O amor é feito de sonhos, sim, porque sonhar faz parte da própria essência do ser humano. Quando se deseja, cria-se um mundo a parte de tudo, e se parte para realizar. Estar ao lado de uma pessoa e desejar que as horas não passem, sentir que não há, naquele momento, outro lugar melhor, estar feliz, porque o coração pulsa sob a música daquele amor. Compartilhar conhecimentos, aprender a tolerar, interessar-se pelas coisas do outro, e assim caminhar juntos, superando as dificuldades. Enaltecer as qualidades, auxiliar a superar os defeitos, sem julgamentos, pois somos seres em constante construção. Para viver um grande amor basta que ele surja, que o alimente, que o faça crescer. Basta só isso; mas como hoje em dia é difícil viver um grande amor, porque as pessoas estão fechadas em si mesmas, julgam somente com seus olhares, gritam com a intenção de ofender, desrespeitam os espaços, os limites, o outro. Aceitam o que dizem, pois há muitos que dizem para destruir um grande amor. Algumas pessoas perderam a capacidade de serem verdadeiras, essas perderam a capacidade de viver um grande amor. Algumas pessoas justificam suas fraquezas no comportamento do outro, como se alguém pudesse mudar um destino que só a elas pertence, essas também não podem viver um grande amor. Algumas pessoas não desejam viver um grande amor, e quando querem, já é tarde demais. Quando a cabeça fala mais alto do que o coração, já não se vive um grande amor. Não é difícil viver um grande amor, os olhos dizem mais do que qualquer palavra, dos olhos, nada se constrói sem a alma, os olhos são espelhos de quem vive um grande amor.

Link para o vídeo:
Não importa onde você parou... em que momento da vida você cansou... o que importa é que sempre é possível e necessário "Recomeçar" (Drummond)

domingo, 18 de outubro de 2009

Ouro Preto - MG

Minas Gerais sempre foi um Estado pelo qual tive um grande carinho e costumo dizer que se não vivesse em São Paulo viveria no Estado mineiro. O povo, a comida, o ar que se respira por lá me é muito agradável. Muito parentes maternos nasceram em Minas, por isso, durante a infância, estive ali muitas vezes, Governador Valadares, Ipatinga, Belo Oriente, Belo Horizonte, mas não conhecia Ouro Preto. Assim, imbuído desse projeto de visitar os locais históricos, sobretudo, literários, fui conhecer a cidade que se assemelha muito à Évora, ambas patrimônio mundial da humanidade. Muitas igrejas, museus, pontos turísticos, uma Universidade Federal, várias repúblicas de estudantes... Foi ótimo estar na Praça Tiradentes, com uma linda paisagem, cartão postal da cidade, ver a arquitetura colonial, conhecer as minas, estar nas casas onde viveram inconfidentes e escritores árcades. Quando falar de literatura, certamente recordarei dessa cidade, cuja história marca-se pela exploração do ouro, que certamente foi baseada na exploração de muitas pessoas, porém, que emana a luta de cidadãos engajados na sociedade que pretendiam modificar. Como tive muita sorte, no dia de ir embora, passando pela Praça Tiradentes, ainda pude beber uma Heineken gelada, acompanhada de torresmos e escutando Chico Buarque e Cartola, pela voz e instrumentos de bons músicos do local.
Vizinha a Ouro Preto está Mariana, com suas estórias, seus pontos históricos, suas belas ruas. Tomar um cafezinho ouvindo o sotaque dos funcionários da padaria foi muito agradável, como falam com graciosidade! E claro, andar no trem (Maria Fumaça) que liga as duas cidades, admirando toda a paisagem que vai sendo cortada pelos trilhos. Não tive tempo de ir às cachoeiras, mas claro que retornarei a essas cidades, quem sabe, quando estiver voltando de Itabira, terra em que nasceu Drummond e minha próxima parada no saudoso Estado de Minas Gerais.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Florbela Espanca - a poetisa do Alentejo

Tendo regressado da região em que viveu Florbela Espanca, da Vila onde nasceu e de Évora, em cuja praça descansa um busto da grande poetisa portuguesa, não poderia deixar de postá-la em meu blog. Florbela foi grande, em meio a sua tristeza existencial, suas dores de existir, seus ataques neuróticos, os abortos que sofreu, a morte do irmão em um acidente aéreo sobre o Tejo, e que nunca pôde superar, os casamentos desfeitos, razão de vários preconceitos que viria a sofrer, a paternidade não assumida. Tudo isso a conduzia para o suicídio, o qual concretizou em 1930, no dia 07 de dezembro, data de seu aniversário, aos 36 anos de idade. Grande parte da sociedade foi impiedosa com a poetisa "por muitos desses aspectos negativos (...) Florbela não sentiu carinho; por isso, ela se afastou da sociedade; por isso, cultivou na sua alma de artista, as flores perecíveis da paixão, da dor, do sofrimento, da angústia e da amargura" (Antonio Capao, p. VIII).

Crepúsculo

Teus olhos, borboletas de oiro, ardentes
Borboletas de sol, de asas magoadas,
Poisam nos meus, suaves e cansadas,
Como em dois lírios roxos e dolentes...

E os lírios fecham.. Meu amor não sentes?
Minha boca tem rosas desmaiadas,
E as minhas pobres mãos são maceradas
Como vagas saudades de doentes...

O Silêncio abre as mãos... entorna rosas...
Andam no ar carícias vaporosas
Como pálidas sedas, arrastando...

E a tua boca rubra ao pé da minha
É na suavidade da tardinha
Um coração ardente, palpitando...


Princesa Desalento

Minh'alma é a Princesa Desalento,
Como um Poeta lhe chamou, um dia.
É magoada, e pálida e sombria,
Como soluços trágicos do vento!

É frágil como o sonho dum momento;
Soturna como preces de agonia,
Vive do riso de uma boca fria:
Minh'alma é a Princesa Desalento...

Altas horas da noite ela vagueia...
E ao luar suavíssimo, que anseia,
Põe-se a falar de tanta coisa morta!

O luar ouve a minh'alma, ajoelhado,
E vai traçar, fantástico e gelado,
A sombra duma cruz à tua porta...

Florbela não se filiou a períodos literários, mas fez dos sonetos a sua forma de expressão. Para quem quiser saber mais sobre Florbela Espanca, esse link é muito interessante.

ESPANCA, Florbela. Autores portugueses de ontem 9: Sonetos. Aveiro: Livraria Estante Editora, 1992.

Andrea Doria (Renato Russo)


Dentre as músicas que sinto como dotadas de uma maior expressão significativa está Andrea Doria, de Renato Russo. O nome da canção foi extraído de uma embarcação italiana (Gênova), que recebeu o nome de um importante almirante do século XV. O grande transatlântico naufragou em meados do século passado. O próprio sobrenome de Renato é fruto de sua admiração (muito justificada) por um filósofo e humanista contemporâneo, Bertrand Russell, que recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1950. Muito embora nunca tenha sido um grande fã da banda Legião Urbana, reconheço essa canção e outras, feitas pelo seu líder, compositor e cantor, como obras de um gênio. Nesse sentido, Renato não foi a voz de uma juventude, foi muito além disso, o que o eterniza, não como ídolo, mas como um artista consagrado, naquele conceito de artista que hoje anda um tanto esquecido. Em Andrea Doria, a música desencontra-se para se encontrar, durante o tempo todo. Há uma relação que não se estabelece, de um mundo que já está perdido, e parece que a voz principal, falando com um outro, fala consigo próprio. No mundo real, os sonhos se perderam, e a única saudade era de uma força que construía um outro mundo: neste momento, a solidariedade e a identificação se realiza, única forma de romper com a falta de sentido das coisas "não queria te ver assim, quero a tua força como era antes". O ser parece estar imune a essa disjunção, pois recriou o seu mundo, a sua própria lei, e essa é a sua sorte, que o mantém vivo. Letra e música se completam, parabéns Renato.

Meus bons amigos, onde estão...

Gostaria de deixar registrado aqui o meu carinho e admiração por Cristiano, Mariú, Lígia e Juliana, a semioticista Amanda, com quem passei horas enriquecedoras, pessoas que estão criando e produzindo, grandes amigos que fiz, que infelizmente, pela correria do Simpósio e pelos destinos de cada um, no último dia não tive a oportunidade de me despedir. Tentaram me convencer a ir para a Espanha, para a França, mas eu já tinha um trajeto (quase) definido. Sei que nos encontraremos, porque as Letras nos colocarão de novo numa mesma estrada, e se elas não nos colocar, nossa amizade fará isso. Vocês demonstraram ser pessoas incríveis, inteligentíssimas, sem perder a simplicidade, das quais sempre lembrarei. Obrigado pelos ensinamentos, parabéns pelos brilhantes trabalhos. Assim como o Leandro, a Gisele e o Régis, que conheci na Universidade Cruzeiro do Sul e que muito me acrescentaram, foi ótimo conhecer pessoas como vocês. Deixo também uma lembrança à professora Maria Célia, a quem muito admiro, pela mesma inteligência e simplicidade. Mesmo registro a toda minha família, que sempre me apoia (até quando não mereço).

Atravessando as cercas embandeiradas que separam os quintais

Parafraseando Dostoievski, vou escrever aqui as minhas notas de primavera sobre impressões de outono: o que marca os países são as suas culturas, não suas delimitações políticas. O ser humano se distingue na sua crença, língua, modos de comportamento, mas se unifica em suas emoções, aí está a literatura em seu complexo e amplo processo de imitação do real. Andar por um país "estranho" causa ao mesmo tempo expectativa e êxtase. Reconhecer(-se) a todo momento, identificar(-se) pela diferença ou semelhança. Desci em Lisboa, cujo aeroporto já não comporta mais a demanda (daí, talvez, os motivos de ter a mala extraviada por duas vezes). Os ônibus que ali passam são um saldo positivo para se locomover pela capital portuguesa e chegar até as principais estações, aí sim, servir-se de trens (comboios), metro, ônibus (autocarros) que partem para várias regiões de Portugal e até para a Espanha, sem longas esperas. Em duas horas cheguei à Évora, região do Alentejo (pois o rio Tejo corta Lisboa). Nessa mesma região conheci Estremoz, Borba, Vila Viçosa (onde nasceu Floberla Espanca) e Beja, essa última, depois de Évora, a que mais me impressionou, pelo Castelo, a organização da cidade, uma biblioteca maravilhosa e claro, o convento em que viveu Mariana Alcoforado. Évora é linda, as igrejas, monumentos, castelos, praças, o povo cordial. Está cercada por grandes muralhas, pois ali viveram vários príncipes. Toda a região do Alentejo é cercada por vastos campos: é uma importante região vinícola. De Portugal fui a Roma, três horas de voo. O ponto positivo é a estação de trem, que fica no próprio aeroporto. De lá, fui à estação Termini, a trinta minutos, no centro de Roma. Dali, vários ônibus, trens e metrô possibilitam ir a todos os pontos da cidade, sem grandes dificuldades. Um bilhete de 3,70 euros é válido nos transportes por todo o dia. Assim, visitei as praças, a Fontana de Trevi, o Panteão, o Vaticano e o Coliseu, esse é incrível: ao lado da estação do metrô Colisseo, é a expressão máxima do que é Roma: a modernidade ao lado de tanta história, monumentos gigantescos de séculos, gente de todo o mundo caminhando lado a lado enquanto a cidade precisa continuar em seu cotidiano. Ouvir e falar com os italianos, esse belíssimo idioma, passear pala Vila Borghese, um imenso parque com teatro, cinema, bares e restaurantes, muitas estátuas de escritores, como Goethe, Gogol, Victor Hugo. Enfim, é inesquecível estar caminhando naquelas ruas, apreciando o que nem o tempo conseguiu destruir, embora haja sido constantemente tentado pelas mãos dos homens.

sábado, 10 de outubro de 2009

De Portugal para Itália

Já sinto o tempo da despedida, deixando a terra de Camões rumo a de Dante. Sentirei falta do povo, dos museus, dos castelos, da literatura, dos amigos que fiz. Há muito ainda a se conhecer na Italia. Mas fico feliz por saber que estarei retornando para casa em breve. Sinto saudades, em meio a tanta alegria e experiências que vivo. Tudo maravilhoso!!!

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

VIAGEM À EUROPA

Caros amigos,

Como a maioria já sabe, estarei viajando durante os dias 03 de outubro a 14 de outubro de 2009, com dois únicos objetivos: conhecimento e experiência. Walter Benjamim já destacava a importância dessas experiências em seu texto “O Narrador”. Estudo e viagem são relações complementares, e quero ver sobre o que li.
Chegarei na Espanha dia 04, no início da manhã, onde pretendo chegar ao centro de Madrid, e em Lisboa por volta das 22:00 horas. Antes da meia-noite, vou de Ônibus à Alcobaça, próximo a Leiria, chegando por lá umas duas da madrugada, a fim de, no dia 05, visitar o Mosteiro de Alcobaça, primeira obra gótica erguida em terra portuguesa, local onde estão enterrados Inês de Castro e o príncipe D. Pedro, cenário de uma das passagens mais belas da literatura portuguesa, a mais lírica da épica camoniana, “Os Lusíadas”.

Do teu príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante teus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.

Inês foi morta, pois o povo não aceitava o romance entre a criada e o príncipe, apesar de já terem três filhos. D. Pedro I, que ficou conhecido como o Cruel, buscou os assassinos de Inês, os matou, e mandando desenterrá-la, a coroou rainha depois de morta. Construiu os túmulos frente a frente, para ali ficarem eternamente.

Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam
Contra üa dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?

O poeta se revolta com tal força, que pede ao Sol que se esconda de vergonha, pela cena terrível que ocorria, comparando-a ao caso de Atreu, rei de Micenas, que concebe um plano ao saber que seu irmão gêmeo, Tiestes, o traía com a própria esposa. Mata os filhos de Tiestes e, fingindo uma reconciliação, os serve cozidos num banquete. Quando a refeição termina, Atreu exibe os ossos e as cabeças das crianças.

Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes.


No próprio dia 05, parto para Évora, cerca de 300 Km do Mosteiro, cidade em que ocorrerá o Seminário, que se estenderá até dia 11, das 08:30 às 19:30 horas, falando-se do ensino de língua portuguesa, políticas linguísticas internacionais, gramática discursiva, gêneros discursivos textuais e análise do discurso, literatura, neologismos, escrita e letramento, geolinguística, oralidade, morfologia histórica, leitura, bilingüismo etc. Ainda durante o período do seminário, haverá um dia em Fátima, passeio em Vila Viçosa e nos principais pontos de Évora. Em Belém, no mosteiro dos Jeronimos, encontra-se a região do Restelo, praia em que os portugueses desembocaram para as grandes conquistas marítimas, episódio também gravado na literatura por Camões, diga-se de passagem, ainda bem controverso:

"Qual vai dizendo: —" Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento!"

— "Ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.

Dia 11, à noite, estarei partindo e chegando a Roma, na Itália, para visitar os templos históricos, o Panteão, o Coliseu (anfiteatro construído para celebrar os confrontos entre os gladiadores, cujas arquibancadas alojavam até 73.000 espectadores), as Fontes, monumentos, museus, e o Vaticano, e claro, chiacchierare (tagarelar) um pouco com os moradores do bel paese, de tantos artistas, pintores, escultores, filósofos e literatos como Dante, Petrarca, Leopardi, Calvino. Enfim, dia 14 estarei retornado, cheio de estórias na bagagem, eternamente gravadas na memória.

domingo, 27 de setembro de 2009

Lo scrittore innamorato


O escritor apaixonado é uma coletânea de cartas de amor, que traz diversas situações recorrentes às pessoas que estão ou foram apaixonadas: fala-se de amores eternos, efêmeros, união, separação, doença, morte, encontros e desencontros. O livro foi organizado por Giorgio Weiss, publicado em Roma, no ano de 1995, pela Ila Palma & Edizioni Associate. As dores, alegrias e as incertezas que são apresentadas no livro nos aproximam das pessoas que ali escrevem, e logo nos identificamos nesses mesmos sentimentos. Após o trecho que se encontra neste livro, faço a tradução para o português, das palavras, pois os sentimentos somente são traduzidos em nossos corações...

Ouça: E noi due per sempre (Wess e Dori Ghezzi)


Angela, amore mio,

la presente è una lettera d'addio. Quando tu leggerai queste righe io sarò più che lontano - e poco men che morto - sarò fra le braccia di un'altra.

Non trovo parole per dirti quale grande sollievo è, per me, non dover più sopportare l'intensità della tua, della nostra, folle passione - e neanche lo cerco. No! Il silenzio è il mio ricuperatto paradiso, la mia nuova conquista, il buon retiro, il porto tranquillo finalmente raggiunto dopo tante tempeste di parole - dalle quale siamo stati sballottati senza tregua, per nove lunghi e verbosi anni, fra un naufragio e l'altro.

Sì, Angela, lo ammetto, era dolce naufragare in quel mare di orgasmi e di sussurri e grida, di dolci accenti e di commenti a caldo, ma a un certo punto non se ne può più.

Non so, Angela, noi trovavamo il modo i la maniera di amoreggiare tra un atto d'amore e l'altro, ma anche riscivamo a litigare fra un litigio e l'altro.

Ti auguto buona fortuna - ed ogni bene - con questo suo nuovo spasimante... Roberto... si chiama così? Senz'altro, se le mie informazioni sono esatte, la durezza d'orecchio è un vantaggio, per lui, più di quanto non sarà di conforto, per te, temo, il suo moscio carattere.

Quanto a questa mia nuova fiamma, oh, Desdemona è tutto l'opposto di te - riposante quanto tu era faticosa, scema scema quando tu sei mordace, docile, pacioccona quanto tu piena di vita, distensiva in contrapposto alle tensioni in cui mi hai tenuto per nove anni, previdibile laddove tu eri sempre sorprendente, insomma, d'una noia vitale, e, sopratutto, poco men che muta.

Addio.


P.S. Hai qualcosa giè in programma per le prossime feste di Natale?

(Francesco Paolini)


Angela, meu amor,

esta é uma carta de adeus. Quando você ler estas linhas eu estarei mais do que longe - e pouco menos do que morto - estarei entre os braços de outra!

Não encontro palavras para te dizer quanto alívio é, para mim, não ter mais que suportar a intensidade da sua, da nossa, louca paixão - e também não a procuro. Não! O silêncio é o meu paraíso resgatado, a minha nova conquista, o bom retiro, o porto que finalmente alcanço depois de tantas tempestades de palavras - das quais fomos sacudidos sem trégua por nove longos e verbosos anos, entre um naufrágio e outro.

Sim, Angela, admito, era doce naufragar naquele mar de orgasmos e sussuros e gritos, a voz doce e as palavras quentes, mas a um certo ponto se não se pode mais.

Não sei, Angela, encontramos o modo e a maneira de nos amarmos entre um ato de amor e outro, mas também conseguimos novamente brigar entre uma discussão e outra.

Te desejo boa sorte - e cada bem - com este seu novo caso.. Roberto... se chama assim? Sem dúvida, se as minhas informações estão corretas, fingir que não se escuta é uma vantagem, para ele, mais do que não será o conforto, por você, temo, o seu frouxo caráter.

Esta minha nova chama, oh, Desdemona é em tudo o oposto de você - tão leve quanto você era cansativa, é doce, uma calmaria tanto quanto você é cheia de vida, é tranquila, oposta às tensões em que me teve por nove anos, previsível, enquanto você era sempre surpreendente, enfim, de um tédio vital, e, sobretudo, um pouco menos que muda.

Adeus,

P.S. Tem alguma coisa já programada para o próximo Natal?

Literando a vida

Conheça também o blog literando a vida.

A Vida Ética (Peter Singer)

Filósofo australiano, Singer causa muito polêmica pela franqueza com que trata assuntos atuais, que ainda estão sob as vestes de muita hipocrisia social, como por exemplo, qual a dívida que tem os ricos para com os pobres? Segundo Singer, quando nos equipamos de coisas surpéfluas, nos tornamos responsáveis das mortes pela fome que ocorrem nos países miseráveis, mesmo os mais distantes. Seus livros foram vetados em Congressos na Alemanha e vários protestos foram realizados nos EUA sob a alegação de ser o filósofo o "Dr. Morte", em razão da sua defesa enfática ao direito à eutanasia, caso seja preciso aliviar sofrimentos, ou em recém-nascidos que não tenham condição de sobreviver. Ele não concorda com a superioridade humana pelo critério da racionalidade, como pensam os especistas, pois sendo assim, como afirma, entre matar um porco, um cachorro ou um cavalo e uma crinaça com graves problemas mentais, à luz deste critério, morreria a criança, pois é a que tem menor capacidade de razão. É claro que neste pequeno trecho se torna perigoso discutir as ideias deste filósofo, e por isso não cito trechos mais contundentes, e polêmicos, mas ele se centraliza no seguinte fato: devemos aliviar sofrimentos (critério usado para muitas questões). Este pensar sobre sofrimento o faz igualar os animais num mesmo grau de importância em relação aos seres humanos (contra o especismo). O seguinte trecho, embora seja apenas uma citação constante em seu livro (p. 52), representa muito bem a ideia que Peter Singer tem sobre o conceito de sofrimento e felicidade, muito embora prefira falar em igualdade a direito:
"Dia virá, talvez, em que o restante da criação animal consiga aqueles direitos dos quais só poderiam ter sido espoliados pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o negror da pele não é razão para um ser humano ser abandonado sem misericórdia aos caprichos de um torturador. Talvez chegue o dia em que o número de pernas, a vilosidade da pele, ou a terminação do osso sacro sejam razões igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. Que outra coisa poderá traçar linha intransponível? Será a faculdade da razão ou talvez a faculdade do discurso? Mas um cavalo ou cão adultos são animais incomparavelmente mais racionais, e também mais sociaáveis, que uma criança de um dia de idade, ou de uma semana, ou mesmo de um mês. Supondo-se porém que assim não fosse, de que adiantaria isso? A questão não é: Eles são capazes de raciocinar? Nem tampouco seria: Eles são capazes de falar? A questão é: Eles são capazes de sofrer?" (Jeremy Bentham)
A favor ou contra as ideias de Singer, esse tipo de texto favorece em muito nossa capacidade de reflexão, nos colocando de frente com situações fortes, contudo, tão necessárias para a construção de um mundo em que as relações precisam ser reformuladas e reconstruídas.

sábado, 26 de setembro de 2009

Metáfora água na Literatura e em Vidas Secas

A Metáfora é um recurso próprio da Estilística, da Poesia, enfim, do processo de criação que busca ampliar as possibilidades do dizer, buscar novas e infinitas significações, cuja participação do leitor (ouvinte) é de grande importância. Um breve artigo sobre o assunto publiquei em http://revistadasaguas.pgr.mpf.gov.br/edicoes-da-revista/edicao-atual/materias/marca-d2019agua-na-literatura-e-a-metafora-em-vidas-secas, espero que contribua para esse mundo tão fecundo!

O peso da escrita, por Eduardo Ribeiro

Dei-me por reclamar do peso escrita, entenda-se, de escrever. Durante muitos anos, essa prática foi para mim uma necessidade, sempre movida por sensações ainda não definíveis para nós, homens dotados da razão, ainda tão limitados por nosso mundo real. Corriam-se os anos e o peso da escrita passou a ser um fantasma, que ficava sobre meus ombros, que gritava em meus ouvidos, retirando deles a possibilidade de escutar e assimilar qualquer outro tipo de som ao meu redor, o que me trouxe, inclusive, alguns problemas de relacionamentos, já que só me interessava o que dizia esse espírito, esse corpo que pesava sobre o meu, só me interessava a solidão dos meus momentos e a realização dessa minha necessidade. Esta era a minha vida, este era o meu trabalho, e dele sobrevivia, materialmente e espiritualmente. Escrevia de tal modo intenso, que tudo passou a ser muito real, meu círculo de amizades, meus amores, minhas conquistas, tudo dependia dos meus personagens e sentia que eles esperavam de mim tudo aquilo de que necessitavam para existir e ser felizes. Nunca senti o cansar da pena, pois do meu tempo, já não se escrevia assim. Já não havia mais o barulho da máquina de escrever, apenas uma leve dança dos meus dedos que digitavam com grande euforia. Dormir era um martírio, pois precisava abandonar um mundo que jamais me abandonava, dividia com o travesseiro tudo o que já havia pensado e discutia com ele cada nova idéia, cada descaminho de algum personagem. Ele era quem me autorizava a mudar o destino certo de alguém, ele me aconselhava e até mesmo dizia quando era a hora definitiva de desligar-me da minha imaginação, para que encontrasse forças para reiniciá-la no dia seguinte. Certo dia, resolvi ir ao supermercado, pois havia me esquecido de pagar a conta telefônica e não pude, como de rotina, pedir a entrega de uma refeição em minha casa. Sobre os ombros, próximo ao ouvido, aquela voz tentava me convencer a adiar o jantar, talvez deixar para o dia seguinte, mas não sucumbi. Coloquei os chinelos, apaguei o cigarro, vesti um moletom e, sem pentear os cabelos, desci ao térreo e andei por algumas quadras até o armazém mais próximo. Mal me dei conta se havia qualquer outro comércio pelo caminho, pois, à companhia de meus pensamentos, meus sentidos funcionavam muito mal. Comprei um congelado, um pouco de água, alguns chocolates, voltei para casa. Passavam das onze horas, era uma bela noite. Quando acordei, depois de ter dormido umas duas ou três horas, um pouco depois das sete, aproveitei o que havia comprado e o consumi no café da manhã. Mais uma vez aquela força, que já era para mim um peso, impediu-me de fazê-lo à noite, apenas, compulsivamente, voltei a escrever, até pegar no sono. Saciado, liguei o computador, reli as últimas linhas, que mal pareciam que fossem minhas, e voltei a escrever. Mas alguma coisa estava diferente; em detrimento da voz que guiava meu enredo, passei a ouvir um cortador de gramas, irritante, que sonorizava diferentes tons, na medida em que o mato oferecia menor ou maior resistência. Fui à janela e gritei: ESTOU TRABALHANDO. Como um eco, obtive exatamente o retorno das mesmas palavras que proferi. PARE COM ESSE BARULHO!, insisti. O barulho parou, ouvi meia dúzia de palavras ríspidas, e o cortador de gramas voltou ao trabalho, agora com mais vigor.Durante aquelas horas, não conseguia me concentrar. Recorri ao travesseiro, agora sobre a cabeça, mas havia, da parte dele, um completo silêncio. O renitente cortador de gramas havia vencido. Falava, a mim mesmo, sobre o peso que vinha sendo as horas contínuas no computador, sem me dar conta de como não poderia livrar-me nunca mais delas, e como as suas ausências me fariam mal. Foram essas as últimas recordações que tive do dia em que parei de escrever, não só compulsivamente, mas para sempre. A força que me movia não existia mais; naquela noite adormeci para um sono eterno e profundo, meu cigarro se apagou com o fechar do livro. Mais cedo ou mais tarde eu sabia que isso aconteceria, afinal, um mero personagem não pode evitar que seu criador se renda à insensibilidade do mundo real, que a ficção se esmoreça e a vela se apague. Éramos um só, o criador e seu personagem, mas deixei de ser interessante para ele; bem naquele dia em que ele resolveu sair para comprar sua refeição.