sábado, 26 de setembro de 2009

O peso da escrita, por Eduardo Ribeiro

Dei-me por reclamar do peso escrita, entenda-se, de escrever. Durante muitos anos, essa prática foi para mim uma necessidade, sempre movida por sensações ainda não definíveis para nós, homens dotados da razão, ainda tão limitados por nosso mundo real. Corriam-se os anos e o peso da escrita passou a ser um fantasma, que ficava sobre meus ombros, que gritava em meus ouvidos, retirando deles a possibilidade de escutar e assimilar qualquer outro tipo de som ao meu redor, o que me trouxe, inclusive, alguns problemas de relacionamentos, já que só me interessava o que dizia esse espírito, esse corpo que pesava sobre o meu, só me interessava a solidão dos meus momentos e a realização dessa minha necessidade. Esta era a minha vida, este era o meu trabalho, e dele sobrevivia, materialmente e espiritualmente. Escrevia de tal modo intenso, que tudo passou a ser muito real, meu círculo de amizades, meus amores, minhas conquistas, tudo dependia dos meus personagens e sentia que eles esperavam de mim tudo aquilo de que necessitavam para existir e ser felizes. Nunca senti o cansar da pena, pois do meu tempo, já não se escrevia assim. Já não havia mais o barulho da máquina de escrever, apenas uma leve dança dos meus dedos que digitavam com grande euforia. Dormir era um martírio, pois precisava abandonar um mundo que jamais me abandonava, dividia com o travesseiro tudo o que já havia pensado e discutia com ele cada nova idéia, cada descaminho de algum personagem. Ele era quem me autorizava a mudar o destino certo de alguém, ele me aconselhava e até mesmo dizia quando era a hora definitiva de desligar-me da minha imaginação, para que encontrasse forças para reiniciá-la no dia seguinte. Certo dia, resolvi ir ao supermercado, pois havia me esquecido de pagar a conta telefônica e não pude, como de rotina, pedir a entrega de uma refeição em minha casa. Sobre os ombros, próximo ao ouvido, aquela voz tentava me convencer a adiar o jantar, talvez deixar para o dia seguinte, mas não sucumbi. Coloquei os chinelos, apaguei o cigarro, vesti um moletom e, sem pentear os cabelos, desci ao térreo e andei por algumas quadras até o armazém mais próximo. Mal me dei conta se havia qualquer outro comércio pelo caminho, pois, à companhia de meus pensamentos, meus sentidos funcionavam muito mal. Comprei um congelado, um pouco de água, alguns chocolates, voltei para casa. Passavam das onze horas, era uma bela noite. Quando acordei, depois de ter dormido umas duas ou três horas, um pouco depois das sete, aproveitei o que havia comprado e o consumi no café da manhã. Mais uma vez aquela força, que já era para mim um peso, impediu-me de fazê-lo à noite, apenas, compulsivamente, voltei a escrever, até pegar no sono. Saciado, liguei o computador, reli as últimas linhas, que mal pareciam que fossem minhas, e voltei a escrever. Mas alguma coisa estava diferente; em detrimento da voz que guiava meu enredo, passei a ouvir um cortador de gramas, irritante, que sonorizava diferentes tons, na medida em que o mato oferecia menor ou maior resistência. Fui à janela e gritei: ESTOU TRABALHANDO. Como um eco, obtive exatamente o retorno das mesmas palavras que proferi. PARE COM ESSE BARULHO!, insisti. O barulho parou, ouvi meia dúzia de palavras ríspidas, e o cortador de gramas voltou ao trabalho, agora com mais vigor.Durante aquelas horas, não conseguia me concentrar. Recorri ao travesseiro, agora sobre a cabeça, mas havia, da parte dele, um completo silêncio. O renitente cortador de gramas havia vencido. Falava, a mim mesmo, sobre o peso que vinha sendo as horas contínuas no computador, sem me dar conta de como não poderia livrar-me nunca mais delas, e como as suas ausências me fariam mal. Foram essas as últimas recordações que tive do dia em que parei de escrever, não só compulsivamente, mas para sempre. A força que me movia não existia mais; naquela noite adormeci para um sono eterno e profundo, meu cigarro se apagou com o fechar do livro. Mais cedo ou mais tarde eu sabia que isso aconteceria, afinal, um mero personagem não pode evitar que seu criador se renda à insensibilidade do mundo real, que a ficção se esmoreça e a vela se apague. Éramos um só, o criador e seu personagem, mas deixei de ser interessante para ele; bem naquele dia em que ele resolveu sair para comprar sua refeição.

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