
Conheci a escritora Teolinda Gersão nas aulas de Literatura Portuguesa, na USP, ainda na graduação, ministradas pela professora Lilian Jacoto. Na oportunidade, estudávamos os escritores contemporâneos e a obra em que nos centrávamos eram Os Teclados. Terminada a faculdade, em um curso de extensão sobre o conto português no século XX, voltei a entrar em contato com Teolinda, agora por intermédio do excelente texto "Um casaco de raposa vermelha". Este conto tematiza dois aspectos importantes da literatura do século XX; o desejo (desorganização do destino), segundo Foucault, o indivíduo que deseja se revela contra a ordem das coisas; e a escrita do corpo (republicação das Cartas Portuguesas por três escritoras na década de 70).
Uma pequena empregada bancária vê numa loja um casaco de raposa vermelha e passa a desejá-lo. Durante três meses (tempo necessário para juntar o dinheiro e liquidar o valor do casaco) sofre uma tranformação que a faz vestir essa nova pele, o foco é deslocado do objeto para o sujeito, como consequência, há uma mudança de conduta, uma transformação desse sujeito. Durante esse processo, o casaco desperta na mulher um desejo primitivo, inclusive de essência animal, fazendo-a despir da figura de bancária para tornar-se mulher e, finalmente, uma raposa. Há, ao final, um disfarce da barbárie e a incorporação do ônus e a volúpia da fantasia.
- Então bom-dia e obrigada, disse saindo à pressa, receando que o tempo que lhe resta

No momento, o livro que tenho como corpus de análise é Paisagem com mulher e mar ao fundo, ambientado durante o período da ditadura de Salazar, em Portugal. A riqueza das imagens, a forma particular de construção do texto, a linguagem e os diálogos que se estabelecem, a força simbólica, sobretudo, a multiplicidade de elementos que precisam ser associados para aprofundar-se no texto de Teolinda Gersão é que me motivou a buscar várias fontes de estudo e vários estudiosos, entre a linguística, a crítica literária, a filosofia e a história, como Bakhtin, Todorov, Antonino Pagliaro, Eni Orlandi, Fiorin, Diana Luz, Bauman, Adorno, Umberto Eco, além de livros de História, a fim de que se possam encontrar os aspectos dialógicos (múltiplas vozes) que surgem no livro, como elas se impõem ou se calam, para quem falam, como articulam os aspectos poéticos, e buscar uma unidade para tantos símbolos que enriquecem a significação da narrativa. É uma atividade complexa, porém, que me enriquece a cada nova leitura, ensinamentos que somente são permitidos por uma obra de tanta qualidade, com tantos recursos literários, e que estabelece um contato íntimo com várias outras disciplinas. Pretendo, ao longo desse estudo, postar textos baseado nas impressões sobre os resultados dessa análise.
Pela primeira vez na sua vida andava num lugar e não contra um lugar, reparou, e não havia nenhuma força gasta em vão. Apenas o prazer secreto de existir, de existir sem pressa, vagueando, domesticando as coisas com o olhar, deixando-se domesticar pelas coisas, sentindo na casa vazia a presença dele, uma presença sem defesa, abandonada, como se o olhasse enquanto dormia.
(...) Uma etapa da sua vida terminara e uma outra se abria, uma verdade descoberta com o corpo, à medida de seu corpo despido de mitos, cumprido, experimentado, só de experiências e de verdade feito - a força que havia no amor, numa relação de solidariedade e não de supremacia nem domínio, as pessoas reciprocamente apoiando-se, trabalhando juntas para um mesmo fim (Paisagem com mulher e mar ao fundo).
- GOMES, Alvaro Cardoso. A Voz Itinerante. São Paulo: EDUSP, s/d.
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