quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Primeiros encontros com Teolinda Gersão

Teolinda Gersão estudou em Portugal e na Alemanha, exercendo a atividade docente nos dois países, posteriormente, ensinando Literatura Alemã na Universidade de Lisboa, até 1995, passando a partir de então a se dedicar exclusivamente à literatura. Logo no seu primeiro livro, O Silêncio (1981), a escritora já foi premiada. Suas obras tratam sobre a dificuldade de comunicação, a repressão, a violência às liberdades, opressões impostas por um Sistema às classes mais frágeis, o posicionamento do ser humano frente ao mundo. Apesar da protagonização de personagens femininos, Teolinda não é feminista, pois admitir esse posicionamento seria pouco abrangente para o entendimento literário, filosófico e social da escritora. Teolinda tem uma marcante preocupação social, o que faz da literatura uma atividade prática, no sentido de representar questões diretamente afetas a um dado período histórico, para caracterizá-lo no indivíduo e ultrapassá-lo no tempo. Quando comparada à Clarice Lispector, em relação à inquietude da busca pela plenitude da vida, respondeu "há nela toda uma vertente metafísica que a mim não me seduz nem me interessa. Quanto mais vou avançado na vida, mais sinto isso. Apesar de toda admiração e ternura que tenho por Clarice, aquele lado ascético, o lado que diz "não" à vida comum e passa de certo modo ao lado do cotidiano e da vida banal e real dos outros, a troco de uma qualquer revelação transcendente, que no fundo é uma miragem, esse lado, para dizer a verdade, enerva-me..." (GOMES, p. 165)
Conheci a escritora Teolinda Gersão nas aulas de Literatura Portuguesa, na USP, ainda na graduação, ministradas pela professora Lilian Jacoto. Na oportunidade, estudávamos os escritores contemporâneos e a obra em que nos centrávamos eram Os Teclados. Terminada a faculdade, em um curso de extensão sobre o conto português no século XX, voltei a entrar em contato com Teolinda, agora por intermédio do excelente texto "Um casaco de raposa vermelha". Este conto tematiza dois aspectos importantes da literatura do século XX; o desejo (desorganização do destino), segundo Foucault, o indivíduo que deseja se revela contra a ordem das coisas; e a escrita do corpo (republicação das Cartas Portuguesas por três escritoras na década de 70).
Uma pequena empregada bancária vê numa loja um casaco de raposa vermelha e passa a desejá-lo. Durante três meses (tempo necessário para juntar o dinheiro e liquidar o valor do casaco) sofre uma tranformação que a faz vestir essa nova pele, o foco é deslocado do objeto para o sujeito, como consequência, há uma mudança de conduta, uma transformação desse sujeito. Durante esse processo, o casaco desperta na mulher um desejo primitivo, inclusive de essência animal, fazendo-a despir da figura de bancária para tornar-se mulher e, finalmente, uma raposa. Há, ao final, um disfarce da barbárie e a incorporação do ônus e a volúpia da fantasia.

- Então bom-dia e obrigada, disse saindo à pressa, receando que o tempo que lhe restava se esgotasse e as pessoas parassem alarmadas a olhá-la, porque de repente era demasiado forte o impulso de pôr as mãos no chão e correr à desfilada, reencarnando o seu corpo, reencontrando o seu corpo animal e fugindo, deixando a cidade para trás e fugindo - e assim foi com esforço quase sobre-humano que conseguiu entrar no carro e rodar até a orla da floresta, segurando o seu corpo, segurando ainda um minuto mais seu corpo trémulo - antes do bater da porta e do verdadeiro salto sobre as patas livres, sacudindo o dorso e a cauda, farejando o ar, o chão, o vento, uivando de prazer e de alegria e desaparecendo, embrenhando-se rapidamente na profundidade da floresta (A mulher que prendeu a chuva e outras estórias, 2007).

No momento, o livro que tenho como corpus de análise é Paisagem com mulher e mar ao fundo, ambientado durante o período da ditadura de Salazar, em Portugal. A riqueza das imagens, a forma particular de construção do texto, a linguagem e os diálogos que se estabelecem, a força simbólica, sobretudo, a multiplicidade de elementos que precisam ser associados para aprofundar-se no texto de Teolinda Gersão é que me motivou a buscar várias fontes de estudo e vários estudiosos, entre a linguística, a crítica literária, a filosofia e a história, como Bakhtin, Todorov, Antonino Pagliaro, Eni Orlandi, Fiorin, Diana Luz, Bauman, Adorno, Umberto Eco, além de livros de História, a fim de que se possam encontrar os aspectos dialógicos (múltiplas vozes) que surgem no livro, como elas se impõem ou se calam, para quem falam, como articulam os aspectos poéticos, e buscar uma unidade para tantos símbolos que enriquecem a significação da narrativa. É uma atividade complexa, porém, que me enriquece a cada nova leitura, ensinamentos que somente são permitidos por uma obra de tanta qualidade, com tantos recursos literários, e que estabelece um contato íntimo com várias outras disciplinas. Pretendo, ao longo desse estudo, postar textos baseado nas impressões sobre os resultados dessa análise.

Pela primeira vez na sua vida andava num lugar e não contra um lugar, reparou, e não havia nenhuma força gasta em vão. Apenas o prazer secreto de existir, de existir sem pressa, vagueando, domesticando as coisas com o olhar, deixando-se domesticar pelas coisas, sentindo na casa vazia a presença dele, uma presença sem defesa, abandonada, como se o olhasse enquanto dormia.
(...) Uma etapa da sua vida terminara e uma outra se abria, uma verdade descoberta com o corpo, à medida de seu corpo despido de mitos, cumprido, experimentado, só de experiências e de verdade feito - a força que havia no amor, numa relação de solidariedade e não de supremacia nem domínio, as pessoas reciprocamente apoiando-se, trabalhando juntas para um mesmo fim (Paisagem com mulher e mar ao fundo).

- GOMES, Alvaro Cardoso. A Voz Itinerante. São Paulo: EDUSP, s/d.

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