quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Mariana Alcoforado, a freira de Beja

As Cartas Portuguesas, cuja primeira edição reporta a 1666, foram atribuídas a Mariana Alcoforado, nascida em 1640. Aos onze anos ela já havia entrado para o Convento de Beja, em Portugal, e teria apaixonado-se perdidamente por um Capitão francês, que auxiliou o país durante os anos de Restauração. Em 1669 surge na França Lettres Portugaises, traduzidas pelos séculos para todos os idiomas, além de servir como tema de peças, óperas, pinturas, outros livros. Em uma dessas obras, Mariana é descrita como "uma magra freira que o pecado devora". Que uma paixão violenta e um amor intenso podem ter arrebatado a religiosa, disso não há a menor dúvida, muito embora várias tentativas conservadoras buscaram sufocar a estória de Mariana. Basta pensarmos que em pleno século XX vários protestos se acenderam com a homenagem feita à Florbela Espanca na cidade de Évora, quando uma estátua sua foi colocada na praça da cidade. Na década de 70, três escritoras portuguesas publicam anonimamente uma reedição das Novas Cartas Portuguesas.
Com qualidade de estilo literário e carregadas de sentimento, as Cartas tiveram pouca importância para o Oficial francês, que até mesmo constituiu família em seu país. Quantos encontros foram necessários para que se erguesse tamanho sentimento, não se sabe, mas não foram poucas as vezes em que ele esteve nos quartos de Mariana, como é descrito nas suas próprias Cartas. Enfim, "se foi Flaubert que disse que o coração é riqueza que não se vende e não se compra, mas apenas se dá, quem ousa contrariá-lo? (Santos Costa)"

Carta 1: Tão deslumbrada fiquei com os teus carinhos que seria bem ingrata se não te amasse com o mesmo desvario a que me levava a paixão quando me davas provas da tua. Como é possível que a lembrança de momentos tão belos se tenham tornados tão cruel? E como podem agora contra a sua natureza, servir para me torturar o coração? (...) É esta a recompensa que me dás por te ter amado com tanta ternura? Mas não importa, estou decidida a adorar-te toda a vida e a não ver seja quem for.

Carta 2: Quero que toda a gente saiba, já não faço disso um segredo e estou encantada por ter feito tudo o que fiz por ti, contra toda espécie de conveniências. E já que comecei, a minha honra e a minha religião hão-se consistir unicamente em amar-te perdidamente toda a vida. (...) Saio o menos possível do meu quarto, onde vieste tanta vez, e passo o tempo a olhar o teu retrato, que amo mil vezes mais que à minha própria vida.

Carta 3: Trata-me com dureza. Que não te baste a violência dos meus sentimentos! Sê mais exigente! Ordena-me que morra por ti! Suplico-te que ajudes a vencer a fraqueza própria de uma mulher, e que toda a minha indecisão acabe em verdadeiro desespero.
Carta 4: Bem sei que te amo perdidamente; no entanto, não lamento a violência dos impulsos do meu coração; habituei-me à sua tirania, e já não poderia viver sem este prazer que vou descobrindo: amar-te entre tanta mágoa. O que me atormenta é a raiva e a aversão que ganhei de tudo. A família, os amigos e este convento são-me insuportáveis. Tudo o que seja obrigada a ver, tudo o que tenha de fazer inadiavelmente, me é odioso.

Carta 5: O orgulho, tão próprio das mulheres, não me ajudou a tomar qualquer decisão contra si. Ah, suportei o seu desprezo, e teria suportado o ódio e o ciúme que me provocaria a sua afeição por outra! Pelo menos teria uma paixão para combater. Mas a sua indiferença é intolerável. (...) Vivi muito tempo num abandono e numa idolatria que me horrorizam, e os remorsos me perseguem com uma crueldade insuportável. Sinto uma enorme vergonha dos crimes que me levou a cometer; já não tenho, pobre de mim, a paixão que me impedia de lhes conhecer a enormidade. (...) De si nada mais quero. Sou uma louca por passar o tempo a repetir a mesma coisa.

Estive na cidade de Beja e pude visitar o Museu Rainha D. Leonor, o antigo convento em que viveu Mariana Alcoforado. Ali se pode sentir, com toda a força, a história que se insere nas Cartas Portuguesas. Estar de frente à janela no interior do mosteiro nos faz recriar a imagem de Mariana sonhando sua liberdade e sua paixão, janela por onde seus pensamentos puderam chegar até nós. O estilo epistolar de Mariana inspirou diversos outros escritores, como Chordelos de Laclos, em suas Relações Perigosas. Também constitui tema importante em O Primo Basílio, de Eça de Queirós, entre tantas outras referências ao longo dos tempos. Bakthin diz que o texto sempre faz referência a outros textos passados e sempre fará a outros futuros. Nesse sentido, a freira de Beja deixou marcada suas impressões de vida na literatura universal. Mariana faleceu em 1723, seu amado, em 1715.

2 comentários:

  1. A primeira edição das Cartas é de 1669 ( e não 1666), casa Claude Barbin, Paris; as Novas Cartas Portuguesas das três Marias foram editadas em 1972, antes do 25 de Abril de 1974, e foram censuradas e retiradas de circulação pelo anterior regime. Foram reeditadas há poucos dias, em Portugal, pois já estava quase esquecida pelas gerações mais novas a obra que foi um dos maiores gritos de liberdade e emancipação da mulher portuguesa durante o regime salazarista.

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  2. Querido amigo, obrigado por ler o blog e comentá-lo. A data de 1666 é provavelmente a da primeira carta. Você tem toda razão da data de publicação, 1669 (Lettres Portugaises). As três Marias foram importantíssimas para a questão da mulher na sociedade portuguesa, e no regime salazarista, juntamente com outros nomes, como Sophia Andresen, Natália Correia, Eduarda Dionísio, Maria Judite de Carvalho, Lídia Jorge, Augustina Bessa-Luís e Teolinda Gersão.
    As cartas foram reeditadas neste ano, pela D. Quixote, e também foi publicado o Dicionário de Escritoras Portuguesas, de autoria das professoras Conceição Flores, Constância Lima Duarte e Zenóbia Collares Moreira.

    Belíssima a cidade de Beja, foi um prazer imenso estar por aí, inclusive, visitar o museu Rainha D. Leonor. Abraços!!!

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