quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Crime e castigo: uma das obras primas de Dostoiévski

Não tenho dúvida de que esse é o texto que mais me desafia, por isso, começo a escrevê-lo com alguma insegurança. Dostoiévski é grande demais para este espaço, e isso não quer dizer inacessível, restringindo-o a um grupo de leitores, pelo contrário. A vida e obra de Dostoiévski foram deixadas para todos aqueles que buscam compreender um pouco mais do ser humano. Dostoiévski nasceu em 1821, na cidade de Moscou. De ascendência nobre decadente, a familia Dostoiévski não fazia parte da aristocracia rural russa, ao contrário dos outros principais escritores do período, Púchkin, Gógol, Turguiênev e Tolstói. A mãe de Dostoiévski, Maria Fiódorovna, é lembrada pelo filho com muito carinho, como uma pessoa alegre e caridosa, inclusive com os camponeses empregados pela família, sendo a referência de Dostoiévski na sua compaixão com os infelizes e miseráveis, personagens centrais de sua obra. Já a personalidade do pai, médico-cirurgião, profissão honrosa, mas que trazia poucos rendimentos na época, era o avesso da personalidade da mãe do escritor. Homem de muitos defeitos, ainda que fiel, responsável e cristão devoto, além de preocupado com a formação dos filhos, ele sofria de uma doença nervosa que lhe ocasionava instabilidades comportamentais. Era infeliz, rígido, desconfiado, orgulhoso e melancólico. Contudo, o tratamento dispensado pelo pai aos filhos não era mais "severo" ou "violento" que aquele observado pela sociedade russa do século XIX. O texto escrito por Freud e intitulado como "Dostoiévski e o Parricídio" é cercado de fantasia e especulação, já que não são confiáveis as informações de que Dostoiévski sofria, inclusive com seus famosos ataques epilépticos, com uma bissexualidade reprimida e com o desejo da morte do pai, se é que existia de fato, e que acabou sendo assassinado pelos camponeses em 1839. Freud buscou associar a biografia de Dostoiévski a sua teoria, sendo assim, a via escolhida determinou muito de seus enganos. Cabe ressaltar que grande parte do interesse ocidental pela obra do escritor russo adveio do desenvolvimento da psicanálise.

Crime e Castigo foi escrito e publicado após o final dos anos de prisão na Sibéria, local onde Dostoiévski desenvolveu trabalhos forçados, sob a acusação de haver conspirado contra o czar. A corte havia condenado vários acusados à morte por fuzilamento, dentre eles, Fiódor Dostoiévski, que morreria aos 28 anos de idade, dez anos depois da morte do pai, ocasião em que a mãe também já havia falecido. Amarrados três miseráveis ao poste, sob a mira dos fuzis (Dostoiévski estava entre os três próximos), o início dos disparos é interrompido por toques militares que anunciam o perdão do imperador, trocando a execução por trabalhos forçados na Sibéria. Vestido como presidiário e acorrentado, Dostoiévski toma posse de uma caneta e escreve uma carta a seu irmão Mikhail, sobre essa nova possibilidade de vida. A respeito da prisão, escreve:

No verão, confinamento intolerável, no inverno, frio insuportável. Todos os pisos estavam podres. A sujeira no chão tinha uma polegada de espessura; alguém poderia tropeçar e cair… Éramos empilhados como anéis de um barril… Nem sequer havia lugar para caminh
ar… Era impossível não se comportar como suínos, desde o amanhecer até o pôr-do-sol. Pulgas, piolhos, besouros...

CRIME E CASTIGO
Crime e Castigo narra a história de Raskólnikov, jovem estudante que vive em condições precárias na caótica São Petersburgo, cuja condição alimenta o desenvolvimento de uma teoria em que as pessoas extraordinárias trariam um benefício à sociedade se cometessem o homícidio de uma pessoa ordinária: assim, palaneja e executa a morte de uma velha que vive da exploração de pessoas com suas atividades de agiota e que há muito vem também degradando os pertences do personagem principal. Ao concluir a morte da velha, Raskólnikov vê-se, surpreso e contra sua vontade, obrigado a matar também a irmã mais nova da usurária, que surge como testemunha do ato. A partir de então, a consciência de Raskólnoikov passa a atormentá-lo, isola-se do amigo, da irmã e da mãe, vendo-se obrigado a se redimir do fracasso de sua teoria, já que não suporta o peso de suas dúvidas interiores, sente desabar sua crença de que poderia passar por cima dos ditames de sua consciência, romper limites, de provar que pertence a uma classe de grandes homens, enfim, de uma classe "extraordinária".

Ainda que muitas das anotações de Dostoiévski realizadas na prisão tenham servido para a produção de Memórias do Subterrâneo (ou Subsolo) e de Recordação da Casa dos Mortos, é clara a inspiração proveniente da convivência com os presos e de suas experiências na Sibéria para a constituição de Crime e Castigo, primeiro romance que lhe trouxe de fato notoriedade como o grande escritor do realismo russo, ao lado de Tolstói. Marmeládov serviria ao romance "Os Bêbados", na verdade, tratava-se da figura do ex-marido de sua primeira esposa. Orlov, chefe dos bandidos na prisão siberiana, serviu à constituição da personalidade de Raskólnikov, assim como Áristov, que Dostoiévski julgava ser "o exemplo mais repulsivo da degradação de um homem", serviu à Svidrigáilov. Assim, Dostoiévski vai traçando a personalidade dos homens de seu tempo, crianças e adultos degradados por questões sociais e psicológicas, muito deles, embora socialmente medíocres, com grande carga espiritual nobre, como é o caso da prostituta Sônia, que se entrega aos homens imundos da cidade, não para construir uma vida luxuosa, mas para amenizar as desgraças de sua família. E é ela mesma que indicará os caminhos de redenção a Raskólnikov e estará a seu lado nos longos anos de prisão.

Crime e Castigo, enfim, é um romance atraente à crítica e ao leitor. Aparentemente de caráter policial, com os instigantes diálogos entre o inspetor Porfíri e o personagem homicida, o romance vai muito além: é uma investigação da condição humana, nos seus profundos mecanismos psíquicos. Cercado por dívidas, muitas delas provinientes de seu irmão, Dostoiévski contrata um etnógrafa para concluir a obra em um curto espaço de tempo: Anna Grigorievana seria a sua última esposa:

"Sua pena caiu no chão (...) Fiódor afastou móvel e devido ao peso teve que fazer muito esforço. Como consequência, a artéria pulmonar se rompeu e saiu sangue pela garganta. Não me afastei do meu marido nem por um minuto durante o dia todo: ele segurava a minha mão e me dizia baixinho: "Minha pobre... querida... com que estou te deixando... minha pobre, como será difícil a vida para você!" Meu amor por meu marido era tão intenso e abnegado, orgulhava-me tanto de ter o amor, a amizade e o respeito deste homem de tão raras e elevadas qualidades morais, que, para mim, sua perda era irreparável. Fiquei com meu irmão ao lado do caixão até às quatro da manhã".

Muito haveria a falar sobre Dostoiévski e sua obra, sobre o autor que passou da condição de grande promissor da literatura russa, quando jovem, aclamado pela crítica em seu primeiro livro "Pobre Gente", a um grande engano, quando da publicação de "O Duplo", o escritor condenado à morte, preso, acometido pela epilepsia e pelas dívidas (que só terminam em 1881, ano de sua morte), muitas advindas do irmão, pelo vício no jogo, sobre a vida literária, suas relações familiares e seus embates com os escritores de sua época e com os editores. Muito já foi dito e ainda haveria a se falar sobre as traduções, a obra, a vida de um dos maiores escritores do mundo, que descobre importantes princípios da psicologia moderna, que explora a natureza do espírito humano, consagrado pelos seus romances de fôlego, Os Demônios, Crime e Castigo, O Idiota e Os Irmãos Karamazov, contudo, deixe que falem as múltiplas vozes, que Dostoiévski tanto explorou em seus romances:

ARNOLD HAUSER (História social da arte e da literatura) - mitos literários como Ulisses, Dom Quixote, Hamlet ou Fausto são personagens menos complexas do que as criações do escritor russo, como Raskólnikov e Michkin (O Idiota).
SIGMUND FREUD - os Irmãos Karamazov é o maior romance já escrito (raciocínio sobre as consequências da "morte de Deus" antes mesmo de Nietzche).
LEV TOLSTÓI (à última mulher de Dostoiévski): "é impressionante como as mulheres dos ecritores se parecem com seus maridos. Dostoiévski era para mim uma pessoa muito querida e provavelmente a única a quem eu poderia perguntar sobre muita coisa e que me responderia a muitas questões. Sempre imaginei Dostoiévski como um homem possuidor de profundo sentimento cristão". Tosltói e Dostoiévski nunca se encontraram.

CLARICE LISPECTOR - misturava Dostoiévski com livro de moça, fiquei impressionadíssima com Crime e Castigo, livro que me fez ter uma "febre real".
HAROLD BLOOM (muito embora suas tendenciosas críticas ao homem e escritor Dostoiévski
) - Dostoiévski detinha o gênio da dramatização da personagem e da personalidade, e, no meu entendimento, a relação do escritor russo com Shakespeare é mais profunda do que a crítica tem apontado até o presente.
MIKHAIL BAKHTIN - consideramos Dostoiévski um dos maiores inovadores no campo da forma artística. Estamos convencidos de que ele criou um tipo inteiramente novo de pensamento artístico, a que chamamos convencionalmente de tipo polifônico. Pode-se dizer até que Dostoiévski criou uma espécie d
e novo modelo artístico do mundo.

Não posso deixar de sugerir a adaptação de Crime e Castigo para o cinema (claro, depois da leitura do livro), feita na Inglaterra, no ano de 2002, pelo diretor Julian Jarrold, dada a fidelidade ao enredo e ambientação em relação à obra escrita.
Também sugiro, para saber mais sobre Dostoiévski, o site http://www.cafedostoievski.info/literatura/escritores/dostoievski/principal.html (site que também traz outros escritores).
Por fim, a fantástica biografia (estudo da vida, obra e período) de Joseph Frank, em cinco longos e louváveis volumes.

Dostoiévski rompeu, ao lado de outros escritores realistas russos, a divisão entre o mundo oriental e ocidental.

3 comentários:

  1. Eu não poderia deixar de escrever sobre Dostoiévski, que ao meu ver, é sem contestação, "o monstro sagrado" da Literatura Universal.
    Li Crime e Castigo em apenas dois dias, até então, não conhecia leitura mais estimulante.Um romance da condição humana onde Raskólnikov, protagonista do romance, anti-herói e misantrópico, desenvolve teorias acerca da humanidade chegando à obsessão, comete um homicídio e procura justificar seu crime de maneira racional, sendo traído por sua própria consciência, o que nos leva a pensar que para um crime, há sempre um castigo...
    E como não falar de Sônia, moça modesta, pobre e humilde, que coagida pela madrasta, se prostituia para ajudar a alimentar os irmãos e sustentar o vício do pai. A essa personagem, Dostoiévski atribuíu valores grandiosos, nos fazendo pensar como aqueles que são julgados pela sociedade, também são providos de bons sentimentos e atitudes. No livro, Sônia é a responsável pela conversão de Raskólnikov, é o antídoto à desgraça, é a ela que ele confessa seu crime, é com o amor dela que ele contará para subir seu calvário e cumprir sua pena na Sibéria.
    Essa obra é a divisão do homem em ordinário e extraordinário, numa tentativa de explicar a quebra das regras em prol do avanço humano.
    Três filmes de Woody Allen foram baseados em Crime em Castigo, são eles: Match Point (inclusive o protagonista aparece lendo o livro no filme), O sonho de Cassandra e Crimes e Pecados.
    Dostoiévski deveria ser referência na formação literária e intelectual de qualquer pessoa.

    Excelente texto, parabéns!!!

    (Desculpe, mas não sei ser sucinta ao escrever sobre o que gosto).

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  2. Logo depois que eu li este texto fui rapidamente me informar sobre Dostoiévski, pois eu sei poucas coisas sobre ele e nunca li um livro de sua autoria.
    Achei bem complexo o trabalho dele, os personagens são dotados de uma carga psicológica subversiva. Então fiquei fascinada.
    A história dos irmãos Karamazov parece ser bem real e presente, porque os três irmãos tecem as diversas personalidades das pessoas de hoje: a agressividade, a intelectualidade e a bondade. "O Idiota" também parece ser interessante. Sem contar que a vida do autor foi complicada, cheia de lances estranhos e tal.
    Gostei mesmo! Assim que eu tiver tempo eu leio.

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  3. Cris, o que você escreveu: "Dostoiévski deveria ser referência na formação literária e intelectual de qualquer pessoa", também é dito por Todorov, em seu livro "A Literatura em Perigo". Obrigado pelas informações que adicionou, como escrevi, sempre há muito o que se dizer sobre Dostoiévski, referência para tantas pessoas.

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