Não tenho dúvida de que esse é o texto que mais me desafia, por isso, começo a escrevê-lo com alguma insegurança. Dostoiévski é grande demais para este espaço, e isso não quer dizer inacessível, restringindo-o a um grupo de leitores, pelo contrário. A vida e obra de Dostoiévski foram deixadas para todos aqueles que buscam compreender um pouco mais do ser humano. Dostoiévski nasceu em 1821, na cidade de Moscou. De ascendência nobre decadente, a familia Dostoiévski não fazia parte da aristocracia rural russa, ao contrário dos outros principais escritores do período, Púchkin, Gógol, Turguiênev e Tolstói. A mãe de Dostoiévski, Maria Fiódorovna, é lembrada pelo filho com muito carinho, como uma pessoa alegre e caridosa, inclusive com os camponeses empregados pela família, sendo a referência de Dostoiévski na sua compaixão com os infelizes e miseráveis, personagens centrais de sua obra. Já a personalidade do pai, médico-cirurgião, profissão honrosa, mas que trazia poucos rendimentos na época, era o avesso da personalidade da mãe do escritor. Homem de muitos defeitos, ainda que fiel, responsável e cristão devoto, além de preocupado com a formação dos filhos, ele sofria de uma doença nervosa que lhe ocasionava instabilidades comportamentais. Era infeliz, rígido, desconfiado, orgulhoso e melancólico. Contudo, o tratamento dispensado pelo pai aos filhos não era mais "severo" ou "violento" que aquele observado pela sociedade russa do século XIX. O texto escrito por Freud e intitulado como "Dostoiévski e o Parricídio" é cercado de fantasia e especulação, já que não são confiáveis as informações de que Dostoiévski sofria, inclusive com seus famosos ataques epilépticos, com uma bissexualidade reprimida e com o desejo da morte do pai, se é que existia de fato, e que acabou sendo assassinado pelos camponeses em 1839. Freud buscou associar a biografia de Dostoiévski a sua teoria, sendo assim, a via escolhida determinou muito de seus enganos. Cabe ressaltar que grande parte do interesse ocidental pela obra do escritor russo adveio do desenvolvimento da psicanálise.No verão, confinamento intolerável, no inverno, frio insuportável. Todos os pisos estavam podres. A sujeira no chão tinha uma polegada de espessura; alguém poderia tropeçar e cair… Éramos empilhados como anéis de um barril… Nem sequer havia lugar para caminhar… Era impossível não se comportar como suínos, desde o amanhecer até o pôr-do-sol. Pulgas, piolhos, besouros...
Crime e Castigo narra a história de Raskólnikov, jovem estudante que vive em condições precárias na caótica São Petersburgo, cuja condição alimenta o desenvolvimento de uma teoria em que as pessoas extraordinárias trariam um benefício à sociedade se cometessem o homícidio de uma pessoa ordinária: assim, palaneja e executa a morte de uma velha que vive da exploração de pessoas com suas atividades de agiota e que há muito vem também degradando os pertences do personagem principal. Ao concluir a morte da velha, Raskólnikov vê-se, surpreso e contra sua vontade, obrigado a matar também a irmã mais nova da usurária, que surge como testemunha do ato. A partir de então, a consciência de Raskólnoikov passa a atormentá-lo, isola-se do amigo, da irmã e da mãe, vendo-se obrigado a se redimir do fracasso de sua teoria, já que não suporta o peso de suas dúvidas interiores, sente desabar sua crença de que poderia passar por cima dos ditames de sua consciência, romper limites, de provar que pertence a uma classe de grandes homens, enfim, de uma classe "extraordinária".Ainda que muitas das anotações de Dostoiévski realizadas na prisão tenham servido para a produção de Memórias do Subterrâneo (ou Subsolo) e de Recordação da Casa dos Mortos, é clara a inspiração proveniente da convivência com os presos e de suas experiências na Sibéria para a constituição de Crime e Castigo, primeiro romance que lhe trouxe de fato notoriedade como o grande escritor do realismo russo, ao lado de Tolstói. Marmeládov serviria ao romance "Os Bêbados", na verdade, tratava-se da figura do ex-marido de sua primeira esposa. Orlov, chefe dos bandidos na prisão siberiana, serviu à constituição da personalidade de Raskólnikov, assim como Áristov, que Dostoiévski julgava ser "o exemplo mais repulsivo da degradação de um homem", serviu à Svidrigáilov. Assim, Dostoiévski vai traçando a personalidade dos homens de seu tempo, crianças e adultos degradados por questões sociais e psicológicas, muito deles, embora socialmente medíocres, com grande carga espiritual nobre, como é o caso da prostituta Sônia, que se entrega aos homens imundos da cidade, não para construir uma vida luxuosa, mas para amenizar as desgraças de sua família. E é ela mesma que indicará os caminhos de redenção a Raskólnikov e estará a seu lado nos longos anos de prisão.
Crime e Castigo, enfim, é um romance atraente à crítica e ao leitor. Aparentemente de caráter policial, com os instigantes diálogos entre o inspetor Porfíri e o personagem homicida, o romance vai muito além: é uma investigação da condição humana, nos seus profundos mecanismos psíquicos. Cercado por dívidas, muitas delas provinientes de seu irmão, Dostoiévski contrata um etnógrafa para concluir a obra em um curto espaço de tempo: Anna Grigorievana seria a sua última esposa:
"Sua pena caiu no chão (...) Fiódor afastou móvel e devido ao peso teve que fazer muito esforço. Como consequência, a artéria pulmonar se rompeu e saiu sangue pela garganta. Não me afastei do meu marido nem por um minuto durante o dia todo: ele segurava a minha mão e me dizia baixinho: "Minha pobre... querida... com que estou te deixando... minha pobre, como será difícil a vida para você!" Meu amor por meu marido era tão intenso e abnegado, orgulhava-me tanto de ter o amor, a amizade e o respeito deste homem de tão raras e elevadas qualidades morais, que, para mim, sua perda era irreparável. Fiquei com meu irmão ao lado do caixão até às quatro da manhã".
Muito haver
ia a falar sobre Dostoiévski e sua obra, sobre o autor que passou da condição de grande promissor da literatura russa, quando jovem, aclamado pela crítica em seu primeiro livro "Pobre Gente", a um grande engano, quando da publicação de "O Duplo", o escritor condenado à morte, preso, acometido pela epilepsia e pelas dívidas (que só terminam em 1881, ano de sua morte), muitas advindas do irmão, pelo vício no jogo, sobre a vida literária, suas relações familiares e seus embates com os escritores de sua época e com os editores. Muito já foi dito e ainda haveria a se falar sobre as traduções, a obra, a vida de um dos maiores escritores do mundo, que descobre importantes princípios da psicologia moderna, que explora a natureza do espírito humano, consagrado pelos seus romances de fôlego, Os Demônios, Crime e Castigo, O Idiota e Os Irmãos Karamazov, contudo, deixe que falem as múltiplas vozes, que Dostoiévski tanto explorou em seus romances:ARNOLD HAUSER (História social da arte e da literatura) - mitos literários como Ulisses, Dom Quixote, Hamlet ou Fausto são personagens menos complexas do que as criações do escritor russo, como Raskólnikov e Michkin (O Idiota).
SIGMUND FREUD - os Irmãos Karamazov é o maior romance já escrito (raciocínio sobre as consequências da "morte de Deus" antes mesmo de Nietzche).
LEV TOLSTÓI (à última mulher de Dostoiévski): "é impressionante como as mulheres dos ecritores se parecem com seus maridos. Dostoiévski era para mim uma pessoa muito querida e provavelmente a única a quem eu poderia perguntar sobre muita coisa e que me responderia a muitas questões. Sempre imaginei Dostoiévski como um homem possuidor de profundo sentimento cristão". Tosltói e Dostoiévski nunca se encontraram.
CLARICE LISPECTOR - misturava Dostoiévski com livro de moça, fiquei impressionadíssima com Crime e Castigo, livro que me fez ter uma "febre real".
HAROLD BLOOM (muito embora suas tendenciosas críticas ao homem e escritor Dostoiévski) - Dostoiévski detinha o gênio da dramatização da personagem e da personalidade, e, no meu entendimento, a relação do escritor russo com Shakespeare é mais profunda do que a crítica tem apontado até o presente.
MIKHAIL BAKHTIN - consideramos Dostoiévski um dos maiores inovadores no campo da forma artística. Estamos convencidos de que ele criou um tipo inteiramente novo de pensamento artístico, a que chamamos convencionalmente de tipo polifônico. Pode-se dizer até que Dostoiévski criou uma espécie de
novo modelo artístico do mundo.Não posso deixar de sugerir a adaptação de Crime e Castigo para o cinema (claro, depois da leitura do livro), feita na Inglaterra, no ano de 2002, pelo diretor Julian Jarrold, dada a fidelidade ao enredo e ambientação em relação à obra escrita.
Também sugiro, para saber mais sobre Dostoiévski, o site http://www.cafedostoievski.info/literatura/escritores/dostoievski/principal.html (site que também traz outros escritores).
Dostoiévski rompeu, ao lado de outros escritores realistas russos, a divisão entre o mundo oriental e ocidental.






