sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A dança da vespa

A DANÇA DA VESPA

O verdadeiro tema, o único e o mais profundo de todos da história do mundo e dos homens, ao qual todos os outros estão subordinados, continua sendo o conflito entre a crença e a descrença.
GOETHE


Sophia acordou, assustada. As reminiscências daqueles nove meses ainda a enlouqueciam. Como sua vida mudara! Dezessete anos pareciam tão breves, mas aqueles últimos meses... Pareciam anos! Os segundos são eternidades quando se sente dores vindas do inferno.
Aquilo a devorava por dentro, a alma! Joseph morrera havia quatro meses; Christina, duas semanas depois do pai.
Sua família estava destruída. Sabia que dezessete anos de um casamento feliz foram condenados naquela noite, no aniversário de Vitória, uma amiga. Por que insistiu para que eu fosse, Joseph? Por que me deixei envolver? Deveria saber que o mal não se instala no mal; ele procura o bem, pois, ao consumi-lo, pode se fortalecer para... O dia de hoje.
Recordava-se de tudo agora e, entre lembranças, portas e janelas de sua casa agitavam-se em descontrole. Era chegado o dia. Um frio tomava-lhe as costas, um calor, o peito. Feridas abriam-se pela sua barriga, muitas já apodrecidas.

Poucos minutos após a festa, Sophia não mais encontrou Vitória. Sentiu-se perdida, de início, mas com o passar de poucas horas se familiarizou com o ambiente. Lá estavam muitos jovens, alegres,
bonitos, que bebiam, dançavam, namoravam. Foi quando viu aquele homem passar, olhos verdes, flamejantes, voz grave e encantadora. Naqueles segundos, era como se Joseph nunca tivesse existido, como se nada do que acreditasse fizesse sentido, como se estivesse ali somente para amá-lo. Fizeram amor. Muitas pessoas estavam à sua volta; riam de forma ensurdecedora, expressando euforia e desespero.
Todos condenados por servi-lo. Sophia sentia pela primeira vez o que passaria a sentir por toda a vida. Ela foi a escolhida, assim como a vespa escolhe a aranha em que depositará sua larva, para comê-la por dentro, no ritual mais macabro da natureza. Quando despertou, estava com sua família e, se não fossem os acontecimentos por que passaria, poderia jurar que tudo havia sido um sonho.

Soube que Vitória morrera na manhã daquele mesmo dia, quando retornava da festa. Acidente de trânsito.

Nos útimos meses, Sophia tentou manter contato com um tio, Andrea, por meio de cartas. Ele era um padre atuante, que poderia ajudá-la; contudo, obtivera uma única resposta, escrita por outra pessoa: ele se suicidara, havia algum tempo. A sobrinha contara tudo a Andrea nas cartas, cada acontecimento, cada segundo de dor, perguntando quem poderiam ser essas pessoas que surgiram em sua vida para promover a desgraça. Apenas não lhe contara como Joseph e as crianças haviam morrido. Sim, as crianças, pois seu filho fora morto logo após aquela noite.

Eternidade! As dores, as visões, Vitória vindo visitá-la a cada madrugada. Poderia conhecê-la somente pela voz. Seus olhos, dois grandes vazios; suas costas eram consumidas por um imenso buraco. Os pés não tocavam o chão; flutuavam abaixo de um vestido roxo, o mesmo da festa. Sophia padecia. Poucos cabelos cobriam-lhe a cabeça, os olhos fundos, fracos, os lábios cobertos de pus. Aquela criança a transformara naquilo! Pensou em arrancá-la pelas mãos, mas não abreviaria tanta miséria ao mundo; havia de esperar que lhe cortasse o ventre e, talvez, carregando consigo seus órgãos, finalmente a matasse.

Nove meses de dores condensaram-se em pouco menos de meia hora. Uma forte tempestade se iniciou e a criança nasceu. E era belo. Tão belo quanto a primeira imagem que ela havia tido de seu pai. Os olhos do menino fixaram-se nos seus. Ele a controlava.

Sessenta e seis dias de paz romperam os meses de aflição e pavor do período de gravidez. Sophia se tranquilizara, seus cabelos tinham voltado a crescer, marcas cobriam-lhe as feridas. Apegou-se à criança. No entanto, o silêncio foi quebrado pela chegada de um padre à sua casa. Chamava-se Paolo e disse vir em nome de Andrea. Aproveitando que a criança dormia, conduziu Sophia até uma igreja. Rezaram durante três horas ininterruptas. O padre lhe mostrou uma caixa, com várias folhas que registravam as 53 aparições de Satanás no Novo Testamento. De lá, retirou um gancho e o entregou à mulher, dizendo:
— Este objeto esteve guardado no cativeiro babilônico, onde o demônio esteve preso. Com ele, nesta noite, você deve arrancar os olhos de seu filho, enquanto o amamenta. Guarde essas páginas em seu bolso; elas registrarão as últimas aparições do demônio. Ele não morrerá, mas viverá na Terra com a luz do inferno, na escuridão absoluta, para onde retornará após esses mil anos. São as orientações de seu tio, não fraqueje. Não estarei te acompanhando e, quando sair desta igreja, o próprio Satanás se incumbirá de me matar, assim como matou todos, menos Andrea. Ele, o Satã, já sabe de tudo, mas confia que naquele momento você aceitará o demônio como seu filho, amando-o e condenando definitivamente a Terra aos desígnios da maldição e do inferno. Não esqueça de olhar para o espelho, Sophia. Ele te mostrará a imagem da Besta. Vou-me aos céus e aguardo lá sua chegada.

Ao primeiro passo fora da igreja, Paolo gritou de desespero. Sophia não sabia como ajudá-lo. Que cena medonha! As órbitas do padre foram sugadas para o interior do próprio crânio, fazendo surgir dois grandes buracos em sangue, ao mesmo tempo em que os lábios, trêmulos, rachavam-se, queimados pelo sol. Suas mãos, retorcidas para trás, expandiram o tórax à frente. O pescoço alongou-se, tenso. Paolo não conseguiu mais respirar. Caiu de joelhos e ergueu o rosto uma última vez para Sophia. — Salve-nos! — pediu, agonizante.

O bebê dormia tranquilamente. Sophia pegou-o no colo, pensando em terminar logo com aquilo. No mesmo instante, uma sensação estranha invadiu-lhe o corpo, um calor começou a sufocá-la...
Devolveu a criança ao berço e, cambaleante, foi para um sofá próximo. Sentiu uma presença maligna... Teve medo de olhar para ela. Quando o fez, um calafrio a dominou. Ali estava seu filho, em pé e sorrindo. A imagem de bebê se perdeu. Surgia à sua frente um menino mais velho. Aquilo foi assustador. Ele acariciou a face materna, dizendo:
— Você vai me matar, mamãe?

Sophia piscou, apavorada. O menino desaparecera. Ela levantou-se do sofá e foi checar o bebê, que continuava dormindo no berço. Não havia mais tempo a perder. A mulher o pegou novamente no colo e retornou ao sofá. Abriu a blusa e o sutiã, oferecendo um dos seios à criança. Esta ergueu as pálpebras, exibindo os grandes olhos verdes e flamejantes, e aceitou o leite, faminta. Sophia, com a mão livre, pegou o gancho que trazia no bolso de trás da calça comprida. Tremia, lutando contra o peso que lhe caía desde os ombros. Uma lágrima escorreu-lhe pela face. O filho a olhava com doçura; parecia suplicar para que não concluísse seu intento. Sophia não podia continuar. É uma carga muito grande, maior do que a de Jesus, pensou, desesperada. Então, redirecionou o gancho, direto aos próprios olhos. Arranque-os, mamãe, sussurrou-lhe a criança, em sua mente. Não havia mais dúvidas. Voltou o cotovelo um pouco para frente, estendendo o antebraço. Precisava ter certeza de que o golpe viria com força suficiente para atravessar sua órbita. ARRANQUE SEUS OLHOS, MAMÃE! De uma só vez, ela executou o movimento. Estranhamente, não sentiu dor. O gancho não conseguira tocar seu olho, impedido por uma mão invisível.
— Para baixo, agora! — disse a voz de seu tio, padre Andrea.
Sophia não o viu em lugar nenhum do quarto. Sentia apenas sua presença.
— Olhe para o espelho — orientou ele — e você entenderá!
Ela o obedeceu, estreitando os olhos para o espelho da cômoda. Não viu refletida a imagem do bebê. Era a imagem de um demônio... No mesmo segundo, a mulher atirou o filho ao chão. Saltou
sobre ele, golpeando-lhe os olhos. Um deles foi arrancado e o outro, esmagado para dentro do crânio.
— Filho meu, eu os matei! — gritou, desesperada. — Matei Joseph e as crianças!
Com o gancho ainda em sua mão, Sophia golpeou a si mesma, arrancando o próprio coração.

Durante mil anos, a Terra conheceu um período de ódio e terror inimagináveis. As pessoas se matavam pelas condições mais banais. As doenças proliferavam; já não era possível ficar mais do que dez minutos fora de casa sem ser contaminado. O ar estava podre. As crianças nasciam e já eram abandonadas. Não havia velhos; tornou-se impossível viver além dos vinte anos. As almas eram conduzidas ao inferno, depois de vagarem por dois séculos entre os vivos. Pobreza, miséria, violência, crimes. Mil anos até que uma nova criança nascesse, crescesse e mudasse os rumos da humanidade.

Apesar dos conselhos que recebera, Sophia entregou seu coração ao filho. Ele o devorou, alimentando-se da bondade da mãe para devolvê-la, sob a forma de desgraças, ao mundo criado por Deus. Assim, após longos mil anos de sofrimento, haveria em todo o universo somente dois reinos, inconciliáveis, que voltariam a se encontrar no dia em que apenas um deles poderia existir. Um único reino.

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