sexta-feira, 5 de março de 2010

O mundo poético em um mundo patético


No livro “Cartas a um jovem poeta”, Rilke aconselha voltar-se para dentro de si mesmo e sondar as profundezas de onde vem sua vida. Sentir a necessidade de dizer, simplesmente para reconstruir o que parece estar fragmentado. Assim fazia Anna Akhamátova. Deixar fluir essa força que vem não se sabe de onde e corta nosso cotidiano de forma tão suave, pois não obriga que a sua voz seja ouvida, há de se ter vontade de percebê-la, e uma boa dose de sensibilidade.

Poesia, do grego poesis, fazer. Hoje somos feitos, pouco fazemos. E a poesia nos liberta, e isso assusta. Esses dias recebi um e-mail, daqueles cuja lista de destinatários representa noventa por cento da mensagem, uma barbárie: divulgava uma suposta resposta escolar (que nem acredito que seja real) aos versos de Camões, “Amor é fogo que arde sem se ver...”, em que a aluna criava outro “poema”, nele atribuindo ao escritor português problemas de saúde, entre eles, falta de sexo, ainda lhe prescrevendo vários medicamentos. A mensagem dizia que pela criatividade, ela havia tirado nota dez. E o título da mensagem: “interpretação de texto”. Poesia não é interpretação, é análise, é o sentir. Quanto ao sexo, o problema atual é o excesso, muitas vezes, só na cabeça.

Estamos perdendo a capacidade de sentir, de olhar para nós mesmos, de escutar o que o outro tem a dizer. E nesse aspecto, a poesia, a literatura pode nos ajudar. A literatura em perigo, como escreveu Todorov, coloca a nossa sociedade em perigo. Bakhtin nos revela a função prática da arte para o ser humano: “devo responder com minha vida por aquilo que vivi e compreendi na arte, para que o vivido e o compreendido não pareçam sem ação na vida”.

A cultura de massa, movida por grandes interesses pequenos, está contribuindo para o desenvolvimento de um mundo cada vez mais patético. A televisão, sua grande aliada, nos destroi, dentro e fora dela. É deprimente ver um bom jornalista e escritor submeter seus textos a um modelo de degradação mental, que os tornam chatos e apelativos, pois já se adequaram às exigências do programa, para uma população cada vez mais privada de uma postura crítica. Postura crítica há muito jogada na descarga. Basta ver os duvidosos resultados do veredicto popular.

Proibiram o comercial da cerveja “devassa”, sob a alegação do excesso de sensualidade de Paris Hilton, que seria ofensivo às mulheres. O anúncio não pode mais ser veiculado no intervalo de “Viver a vida”, mas as mulheres tipificadas na novela, essas continuam poluindo nossas noites, por meio de um enredo que se alicerça num jogo (nada intrigante) de traições, mentiras, futilidades. E a estória de superação de uma pessoa com deficiência física (por favor, nada de necessidades especiais, eufemismos hipócritas), perde-se no marasmo, na construção de frases e atos feitos, típica de péssimas tramas televisivas. O que falar de “Tempos Modernos”? Há dois males neste país que se alimentam numa dialética etérea: corrupção e hipocrisia. Antigamente, relutava aceitar a ideia de que as pessoas fossem construídas pela televisão; hoje, sem dúvida, quando não temos em que nos apoiar, estou certo de que isso seja verdade.

A literatura ou outras formas de conhecimento não salvarão o mundo, nem mesmo reclamam por atenção. Ela simplesmente existe, rica, cheia de humanidade, experiências, lições que se tivéssemos algum tempo para aprendê-las, não estaríamos sofrendo com monstros que alimentamos em nosso dia a dia, para depois lamentarmos as feridas que eles vão abrindo em nossos corações.

Termino este curto desabafo com um trecho de uma carta, escrita por Dostoiévski a seu irmão, presente em um livro que comprei na Itália, Lettere sulla creatività:

Riesco abbastanza bene nello studio del “significato dell’uomo e della vita”; posso studiare i caratteri mediante la lettura degli scrittori in compagnia dei quali trascorro liberamente e gioiosamente la parte migliore della mia vita; non ti dirò più nulla su di me. Mi sento sicuro di me. L’uomo è un mistero. Un mistero che bisogna risolvere, e se trascorrerai tutta la vita cercando di risolverlo, non dire che hai perso tempo; io studio questo mistero perché voglio essere un uomo.

Tenho grande sucesso no estudo do “significado do homem e da vida”; posso estudar os homens mediante a leitura dos escritores em companhia dos quais passo livremente e alegremente a melhor parte da minha vida; não te direi mais nada sobre mim. Me sinto seguro de mim. O homem é um mistério. Um mistério que se necessita resolver, e se você passar toda a vida procurando resolvê-lo, não diga que perdeu tempo; eu estudo este mistério porque desejo ser um homem.

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