No verão, confinamento intolerável, no inverno, frio insuportável. Todos os pisos estavam podres. A sujeira no chão tinha uma polegada de espessura; alguém poderia tropeçar e cair… Éramos empilhados como anéis de um barril… Nem sequer havia lugar para caminhar… Era impossível não se comportar como suínos, desde o amanhecer até o pôr-do-sol. Pulgas, piolhos, besouros...
Ainda que muitas das anotações de Dostoiévski realizadas na prisão tenham servido para a produção de Memórias do Subterrâneo (ou Subsolo) e de Recordação da Casa dos Mortos, é clara a inspiração proveniente da convivência com os presos e de suas experiências na Sibéria para a constituição de Crime e Castigo, primeiro romance que lhe trouxe de fato notoriedade como o grande escritor do realismo russo, ao lado de Tolstói. Marmeládov serviria ao romance "Os Bêbados", na verdade, tratava-se da figura do ex-marido de sua primeira esposa. Orlov, chefe dos bandidos na prisão siberiana, serviu à constituição da personalidade de Raskólnikov, assim como Áristov, que Dostoiévski julgava ser "o exemplo mais repulsivo da degradação de um homem", serviu à Svidrigáilov. Assim, Dostoiévski vai traçando a personalidade dos homens de seu tempo, crianças e adultos degradados por questões sociais e psicológicas, muito deles, embora socialmente medíocres, com grande carga espiritual nobre, como é o caso da prostituta Sônia, que se entrega aos homens imundos da cidade, não para construir uma vida luxuosa, mas para amenizar as desgraças de sua família. E é ela mesma que indicará os caminhos de redenção a Raskólnikov e estará a seu lado nos longos anos de prisão.
Crime e Castigo, enfim, é um romance atraente à crítica e ao leitor. Aparentemente de caráter policial, com os instigantes diálogos entre o inspetor Porfíri e o personagem homicida, o romance vai muito além: é uma investigação da condição humana, nos seus profundos mecanismos psíquicos. Cercado por dívidas, muitas delas provinientes de seu irmão, Dostoiévski contrata um etnógrafa para concluir a obra em um curto espaço de tempo: Anna Grigorievana seria a sua última esposa:
"Sua pena caiu no chão (...) Fiódor afastou móvel e devido ao peso teve que fazer muito esforço. Como consequência, a artéria pulmonar se rompeu e saiu sangue pela garganta. Não me afastei do meu marido nem por um minuto durante o dia todo: ele segurava a minha mão e me dizia baixinho: "Minha pobre... querida... com que estou te deixando... minha pobre, como será difícil a vida para você!" Meu amor por meu marido era tão intenso e abnegado, orgulhava-me tanto de ter o amor, a amizade e o respeito deste homem de tão raras e elevadas qualidades morais, que, para mim, sua perda era irreparável. Fiquei com meu irmão ao lado do caixão até às quatro da manhã".
Muito haveria a falar sobre Dostoiévski e sua obra, sobre o autor que passou da condição de grande promissor da literatura russa, quando jovem, aclamado pela crítica em seu primeiro livro "Pobre Gente", a um grande engano, quando da publicação de "O Duplo", o escritor condenado à morte, preso, acometido pela epilepsia e pelas dívidas (que só terminam em 1881, ano de sua morte), muitas advindas do irmão, pelo vício no jogo, sobre a vida literária, suas relações familiares e seus embates com os escritores de sua época e com os editores. Muito já foi dito e ainda haveria a se falar sobre as traduções, a obra, a vida de um dos maiores escritores do mundo, que descobre importantes princípios da psicologia moderna, que explora a natureza do espírito humano, consagrado pelos seus romances de fôlego, Os Demônios, Crime e Castigo, O Idiota e Os Irmãos Karamazov, contudo, deixe que falem as múltiplas vozes, que Dostoiévski tanto explorou em seus romances:
ARNOLD HAUSER (História social da arte e da literatura) - mitos literários como Ulisses, Dom Quixote, Hamlet ou Fausto são personagens menos complexas do que as criações do escritor russo, como Raskólnikov e Michkin (O Idiota).
SIGMUND FREUD - os Irmãos Karamazov é o maior romance já escrito (raciocínio sobre as consequências da "morte de Deus" antes mesmo de Nietzche).
LEV TOLSTÓI (à última mulher de Dostoiévski): "é impressionante como as mulheres dos ecritores se parecem com seus maridos. Dostoiévski era para mim uma pessoa muito querida e provavelmente a única a quem eu poderia perguntar sobre muita coisa e que me responderia a muitas questões. Sempre imaginei Dostoiévski como um homem possuidor de profundo sentimento cristão". Tosltói e Dostoiévski nunca se encontraram.
CLARICE LISPECTOR - misturava Dostoiévski com livro de moça, fiquei impressionadíssima com Crime e Castigo, livro que me fez ter uma "febre real".
HAROLD BLOOM (muito embora suas tendenciosas críticas ao homem e escritor Dostoiévski) - Dostoiévski detinha o gênio da dramatização da personagem e da personalidade, e, no meu entendimento, a relação do escritor russo com Shakespeare é mais profunda do que a crítica tem apontado até o presente.
MIKHAIL BAKHTIN - consideramos Dostoiévski um dos maiores inovadores no campo da forma artística. Estamos convencidos de que ele criou um tipo inteiramente novo de pensamento artístico, a que chamamos convencionalmente de tipo polifônico. Pode-se dizer até que Dostoiévski criou uma espécie de novo modelo artístico do mundo.
Não posso deixar de sugerir a adaptação de Crime e Castigo para o cinema (claro, depois da leitura do livro), feita na Inglaterra, no ano de 2002, pelo diretor Julian Jarrold, dada a fidelidade ao enredo e ambientação em relação à obra escrita.
Também sugiro, para saber mais sobre Dostoiévski, o site http://www.cafedostoievski.info/literatura/escritores/dostoievski/principal.html (site que também traz outros escritores).
Dostoiévski rompeu, ao lado de outros escritores realistas russos, a divisão entre o mundo oriental e ocidental.