sábado, 27 de março de 2010

poeira: demônios e maldições

Nelson de Oliveira publica mais um livro, pela editora Língua Geral: poeira: demônios e maldições.
Conheci primeiro o professor universitário Nelson, durante um curso em que eu estudava para ser professor universitário. Por consequência, passei a conhecer o Nelson como pessoa, durante quatro sábados, tempo curto, mas revelador. Por fim, conheci o escritor Nelson de Oliveira. Não sei qual é o que mais admiro, por um motivo claro: o Nelson de Oliveira, escritor, é o professor doutor Nelson, também de Oliveira, e o homem Nelson. Sua única fantasia é o talento, para escrever e para ensinar. Não há personagens, ele é autoria de si mesmo. É daquelas pessoas que nos causam inveja, porque ele escreve o que gostaríamos, antes mesmo de ler, de escrever. Uma inveja que nos motiva, que nos faz acreditar. Ele nos mostra que as humanidades sobreviveram, sobrevivem e vivem, não sobre, mas entre nós. Mesmo com tantas dificuldades por que passamos na cultura, ele cria, compulsivamente, rompe barreiras e nos presenteia com cada nova livro. E ele existe! Podemos tocá-lo, talvez nem ele mesmo saiba o que representa para tantas outras pessoas, ou não importa sabê-lo. Mais do que um ídolo, um ícone, um exemplo, Nelson nos permite senti-lo como um amigo, e este talvez seja o grande segredo de todo o sucesso desse grande romancista, por que não dizer, esse grande contador de estórias, que adoramos ouvir.
Tentemos enquadrar sua literatura contemporânea dentro de algum conceito: comecemos por saber que Nelson gosta da ficção científica, que é filho da contemporaneidade, que é artista plástico, que é urbano. Muito nos ajuda, a nos confundir. Nelson ignora, neste livro, a própria contemporaneidade (esta entre aspas), a urbanidade, que trata de excluídos, do dinheiro, da decadência arquitetônica, do verossímil. Ele trata de tudo isso e de nada disso. Buscando referência no meu próprio blog, e formação, ele é um escritor do realismo fantástico, uma realidade meio estranha, que me faz lembrar, ou melhor, não esquecer, de Italo Calvino, e um de seus livros mais impressionantes, traduzido por “Se um viajante numa noite de inverno”. Quem o me apresentava, em 2002, era o professor Jorge de Almeida, da USP. Olha, dá até para dizer: “Estás prestes a começar a ler o novo romance poeira: demônios e maldições de Nelson de Oliveira”, mas Nelson é muito mais maldoso do que o mestre italiano, mais contemporâneo, nonostante il facismo statale, Italo era mais bom moço, em seu Il visconde dimezzato. O escritor italiano vivia entre a segunda guerra mundial e o mundo real. Nelson vive (e sobrevive) entre o nosso mundo real e o nosso mundo mimético, daí, o nosso estranhamento. Acho que o grande marco é: Nelson se utiliza da metalinguagem demonstrando a insuficiência (e inutilidade) dos conceitos primários de literatura falando de literatura, de teatro falando de teatro (aliás, nesta área, Hamlet nos mostra que isso não tem nada de banal), de jornal falando de jornal: a metalinguagem em seu livro nos ensina, na prática, a escrever. O realismo fantástico, de Calvino, e o neo-realismo italiano, foi um conjunto de vozes, dito “dopoguerra”, que procurava entender e reconstruir um mundo desconstruído. Nisso, Nelson vai além, por uma questão diacrônica, ele traz para a prática mimética da literatura a possibilidade de construir, mais do que isso, de transgredir, para ampliar o significado, por exemplo, com referências que vão e vem, reais ou fictícias, possíveis no universo no qual somos imersos; uma trama que nos prende ao enredo, cujo mistério passa a se revelar “in media res” no total de páginas do livro, as nuances linguisticas, imagens que se entrelaçam, repetições que significam, palavrões estilísticos, digo, literariamente “invulgares”, assim como em “O oitavo dia da semana”, o bom humor, a relação fala e escrita, subvertendo normas de pontuações, mesmo que ainda tão tradicionais, que nos faz pensar em novas recorrências do discurso indireto livre, já que ele nos obriga a adotar novos critérios para identificar os interlocutores, critérios novos de linguagem e estilística, as questões políticas subjugadas às questões literárias, outras que aqui não cabem, que não percebi, que perceberão e que nunca perceberei, talvez nem mesmo o autor. É fácil explicar os parágrafos e capítulos curtos pelo caráter folhetinesco, mas difícil é construir a força literária presente em muitos desses curtos parágrafos. A literatura do escritor está intimamente relacionada com o nosso cotidiano, com o estranho, com a psicologia, com a metalinguagem. Nelson é estranho, é fantástico, é maravilhoso, é tudo isso, menos definível. Ele nos mostra eternos conflitos entre o sexo masculino e o feminino, a previsibilidade do comportamento humano, que se adapta a situações mais corriqueiras, como as recorrentes interpretações de sonhos e pesadelos ou o cenário de uma chuva torrencial, detalhada em cada um de seus (nossos) movimentos. Metalinguagem, ficção, nosso quarto, recheado de tantos livros. É sobre isso que passamos a nos preocupar, é isso que passamos a perceber, a cada novo capítulo de poeira: demônios e maldições. Umberto Eco, em sua obra “Sulla leterattura”, disse que “se la generazioni future arriveranno ad avere un buon rapporto (psicologico e fisico) con l’e-book, il potere de Don Chisciotte non cambierà”. O semiólogo italiano, que como Calvino, e Nelson de Oliveira, já nos encantou com suas fábulas, estórias, “criancices” e historicidade, em seu livro Baudolino, quis dizer que, independentemente do meio (Jakobson chamava de canal), a obra sempre prevalecerá. Concordo e discordo. Tendo em mãos (nas duas) o exemplar do livro poeira: demônios e maldições, recém-publicado (e autografado), não posso o imaginar por completo sem sua capa, sem suas cores, sem a relação de linguagens ali estabelecidas e, claro, sem meu autógrafo, talvez, pela simbiose pertinente do autor-escritor e artista plástico (e seus colaboradores). Nelson rompeu, Nelson conciliou. E não percebo nem mesmo a importância de se discutir personagens planos ou esféricos. Raskólnikov era muito esférico; Josef K. não teve oportunidade de o ser, pois, não sabendo de seus pecados, não pôde se corrigir (morreu como um porco)... Acima desta discussão, personagens esféricos ou planos, é a criação que efervesce no autor. Nada mais contemporâneo. Pessoas burocráticas, sentimentos vis, mas humanos, demônios, gnomos, livros, censura e literatura... ficção e realidade, o outro e nós mesmos. Enfim, um brinde a uma das melhores expressões da prosa literária brasileira.

sábado, 20 de março de 2010

O que significa aprender um novo idioma?

Muitas qualificações se voltam para o interesse exclusivo no mercado de trabalho. O tempo é curto, e necessário. Aprender um novo idioma requer, sem dúvida, organização, empenho, objetivo, como todos outros conhecimentos técnicos, mas, ainda (e mais ainda), uma grande dose de amor. Por que amor? Precisamos nos envolver com a cultura, com as pessoas, com os livros, com o cotidiano, com a História, esta com letra bem maiúscula. Daí, talvez, meu distanciamento, inútil e efêmero, com a língua inglesa. Tenho interesses frios com esta língua, não ignoro sua necessidade, sua qualidade, pois estaria, por exemplo, ignorando Shakespeare, Joyce, até mesmo Pessoa, mas prefiro as latinas. A cultura latina é para mim mais interessante (ressalva feita à russa), e isso é muito particular. Assim, optei pela graduação em italiano, estou fazendo o francês, matriculei-me no espanhol. Não me diga que esta última língua é fácil de se entender, quero novamente mergulhar na cultura, na formação do povo, em seus artistas, e me surpreendi já na primeira aula. Nenhum aprendizado é fácil. Aprender um novo idioma é estar em contato com outras milhões de pessoas, buscar chegar as suas origens, tentar entender seus cotidianos, abrir as portas para novos conhecimentos. Talvez, ler o primeiro livro no original; o primeiro beijo de muitos outros. Fazer parte do mundo. E nesse mundo cada vez mais multifacetado e interligado, aprender uma nova língua é se sentir cada vez mais humano, já que é por meio da linguagem que nos desenvolvemos, é por meio dela que realmente mostramos quem nós somos, o que queremos do outro e o que temos para oferecer a ele. Didaticamente, há sempre uma segunda, terceira, quarta língua..., no íntimo, há línguas que se relacionam, que convivem, que se completam. Viva todas as línguas do mundo!!!

sexta-feira, 5 de março de 2010

O mundo poético em um mundo patético


No livro “Cartas a um jovem poeta”, Rilke aconselha voltar-se para dentro de si mesmo e sondar as profundezas de onde vem sua vida. Sentir a necessidade de dizer, simplesmente para reconstruir o que parece estar fragmentado. Assim fazia Anna Akhamátova. Deixar fluir essa força que vem não se sabe de onde e corta nosso cotidiano de forma tão suave, pois não obriga que a sua voz seja ouvida, há de se ter vontade de percebê-la, e uma boa dose de sensibilidade.

Poesia, do grego poesis, fazer. Hoje somos feitos, pouco fazemos. E a poesia nos liberta, e isso assusta. Esses dias recebi um e-mail, daqueles cuja lista de destinatários representa noventa por cento da mensagem, uma barbárie: divulgava uma suposta resposta escolar (que nem acredito que seja real) aos versos de Camões, “Amor é fogo que arde sem se ver...”, em que a aluna criava outro “poema”, nele atribuindo ao escritor português problemas de saúde, entre eles, falta de sexo, ainda lhe prescrevendo vários medicamentos. A mensagem dizia que pela criatividade, ela havia tirado nota dez. E o título da mensagem: “interpretação de texto”. Poesia não é interpretação, é análise, é o sentir. Quanto ao sexo, o problema atual é o excesso, muitas vezes, só na cabeça.

Estamos perdendo a capacidade de sentir, de olhar para nós mesmos, de escutar o que o outro tem a dizer. E nesse aspecto, a poesia, a literatura pode nos ajudar. A literatura em perigo, como escreveu Todorov, coloca a nossa sociedade em perigo. Bakhtin nos revela a função prática da arte para o ser humano: “devo responder com minha vida por aquilo que vivi e compreendi na arte, para que o vivido e o compreendido não pareçam sem ação na vida”.

A cultura de massa, movida por grandes interesses pequenos, está contribuindo para o desenvolvimento de um mundo cada vez mais patético. A televisão, sua grande aliada, nos destroi, dentro e fora dela. É deprimente ver um bom jornalista e escritor submeter seus textos a um modelo de degradação mental, que os tornam chatos e apelativos, pois já se adequaram às exigências do programa, para uma população cada vez mais privada de uma postura crítica. Postura crítica há muito jogada na descarga. Basta ver os duvidosos resultados do veredicto popular.

Proibiram o comercial da cerveja “devassa”, sob a alegação do excesso de sensualidade de Paris Hilton, que seria ofensivo às mulheres. O anúncio não pode mais ser veiculado no intervalo de “Viver a vida”, mas as mulheres tipificadas na novela, essas continuam poluindo nossas noites, por meio de um enredo que se alicerça num jogo (nada intrigante) de traições, mentiras, futilidades. E a estória de superação de uma pessoa com deficiência física (por favor, nada de necessidades especiais, eufemismos hipócritas), perde-se no marasmo, na construção de frases e atos feitos, típica de péssimas tramas televisivas. O que falar de “Tempos Modernos”? Há dois males neste país que se alimentam numa dialética etérea: corrupção e hipocrisia. Antigamente, relutava aceitar a ideia de que as pessoas fossem construídas pela televisão; hoje, sem dúvida, quando não temos em que nos apoiar, estou certo de que isso seja verdade.

A literatura ou outras formas de conhecimento não salvarão o mundo, nem mesmo reclamam por atenção. Ela simplesmente existe, rica, cheia de humanidade, experiências, lições que se tivéssemos algum tempo para aprendê-las, não estaríamos sofrendo com monstros que alimentamos em nosso dia a dia, para depois lamentarmos as feridas que eles vão abrindo em nossos corações.

Termino este curto desabafo com um trecho de uma carta, escrita por Dostoiévski a seu irmão, presente em um livro que comprei na Itália, Lettere sulla creatività:

Riesco abbastanza bene nello studio del “significato dell’uomo e della vita”; posso studiare i caratteri mediante la lettura degli scrittori in compagnia dei quali trascorro liberamente e gioiosamente la parte migliore della mia vita; non ti dirò più nulla su di me. Mi sento sicuro di me. L’uomo è un mistero. Un mistero che bisogna risolvere, e se trascorrerai tutta la vita cercando di risolverlo, non dire che hai perso tempo; io studio questo mistero perché voglio essere un uomo.

Tenho grande sucesso no estudo do “significado do homem e da vida”; posso estudar os homens mediante a leitura dos escritores em companhia dos quais passo livremente e alegremente a melhor parte da minha vida; não te direi mais nada sobre mim. Me sinto seguro de mim. O homem é um mistério. Um mistério que se necessita resolver, e se você passar toda a vida procurando resolvê-lo, não diga que perdeu tempo; eu estudo este mistério porque desejo ser um homem.